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A POLÍTICA DO HISTORICÍDIO

03-03-2017 - Richard N. Haass

NOVA IORQUE – Num mundo em desordem, o Médio Oriente destaca-se. A ordem posterior à I Guerra Mundial desmantela-se em grande parte da região. Os povos da Síria, do Iraque, do Iémen e da Líbia pagaram um pesado preço.

Mas não foram apenas o presente e o futuro da região quem sofreu. Uma vítima adicional da violência de hoje é o passado.

O Estado Islâmico (ISIS) faz questão de destruir coisas que considere insuficientemente Islâmicas. O exemplo mais dramático foi o magnífico Templo de Baal, em Palmira, na Síria. Enquanto escrevo, a cidade de Mosul no norte do Iraque está a ser libertada, depois de mais de dois anos de controlo do ISIS. Não será libertada a tempo de salvar as muitas esculturas já destruídas, as bibliotecas já incendiadas, ou os túmulos já saqueados.

Na verdade, a destruição de artefactos culturais não se limita ao Médio Oriente. Em 2001, o mundo assistiu, horrorizado, enquanto os Talibã faziam explodir as enormes estátuas de Buda em Bamiyan. Mais recentemente, Islamitas radicais destruíram túmulos e manuscritos em Tombuctu. Mas o ISIS está a proceder a destruições numa escala sem precedentes.

Atacar o passado não é novo. Há mais de 2 000 anos, Alexandre Magno destruiu muito daquilo que é hoje chamado de Persépolis. As guerras religiosas que assolaram a Europa ao longo dos séculos deixaram marcas em igrejas, ícones, e pinturas. Estaline, Hitler, e Mao fizeram os possíveis por destruir edifícios e obras de arte associados a culturas e ideias consideradas perigosas. Há meio século, os Khmer Vermelhos destruíram templos e monumentos por todo o Camboja.

Com efeito, aquilo que poderá ser descrito talvez como “historicídio” é tão compreensível como perverso. Os líderes que pretendam moldar uma sociedade em torno de um conjunto novo e diferente de ideais, lealdades, e formas de comportamento, precisam primeiro de destruir as identidades existentes dos adultos e de evitar a transmissão dessas identidades às crianças. A destruição dos símbolos e das expressões dessas identidades e dos ideais que corporizam, acreditam os revolucionários, é um pré-requisito para a construção de uma nova sociedade, cultura, e/ou entidade política.

Por essa razão, a preservação e protecção do passado são essenciais para quem pretender assegurar que os perigosos fanáticos de hoje não são bem-sucedidos. Os museus e as bibliotecas são inestimáveis, não apenas por albergarem e exibirem objectos belos, mas também porque protegem a herança, os valores, os ideais e as narrativas que fazem de nós o que somos, e porque nos ajudam a transmitir esse conhecimento aos que virão depois de nós.

A principal resposta dos governos ao historicídio tem sido a perseguição ao tráfico de arte e artefactos roubados. Isto é desejável por inúmeras razões, incluindo o facto de que aqueles que destroem espaços culturais, e escravizam e matam homens, mulheres e crianças inocentes, adquirem parcialmente os recursos de que necessitam pela venda de tesouros pilhados. A Convenção de Haia de 1954 apela aos estados para não destruírem os locais culturais, e para se absterem de utilizá-los para fins militares, como o estabelecimento de posições de combate, o alojamento de soldados, ou o armazenamento de armas. O objectivo é simples: proteger e preservar o passado.

Infelizmente, a importância desses acordos internacionais não deve ser exagerada, já que a sua aplicação é limitada aos governos que escolhem celebrá-los. Não existem penalidades por ignorar a Convenção de 1954, como fizeram o Iraque e a Síria, nem por abandoná-la, e a mesma não é aplicável a intervenientes não-estatais (como o ISIS). Além disso, não existe qualquer mecanismo de reacção, caso um interveniente na Convenção ou qualquer outra pessoa ajam da forma que a Convenção pretende evitar.

A verdade dura, e triste, é que a comunidade internacional é muito menos interveniente do que sugere a frequente invocação do termo. Com efeito, um mundo que não está disposto a cumprir as suas responsabilidades de protecção de pessoas, como foi recentemente demonstrado na Síria, dificilmente se unirá em nome de estátuas, manuscritos, e pinturas.

Não existe qualquer substituto para impedir os delapidadores de bens culturais antes que estes ajam. No caso das principais ameaças ao passado hoje verificadas, isto significa desencorajar os jovens de escolherem caminhos radicais, abrandar o fluxo de recrutas e de recursos para grupos extremistas, persuadir os governos a destacarem unidades policiais e militares para a protecção de locais valiosos e, sempre que possível, atacar os terroristas antes que estes o façam.

Se a origem da ameaça aos locais culturais for governamental, as sanções poderão ser uma ferramenta mais adequada. A acusação, julgamento, condenação e encarceramento das pessoas que concretizem uma tal destruição pode servir para dissuadir, de maneira semelhante ao que é necessário para pôr cobro à violência contra pessoas.

Até lá, o historicídio continuará a ser simultaneamente uma ameaça e, como já vimos, uma realidade. O passado estará em perigo. Nesse aspecto, não é diferente do presente nem do futuro.

Richard N. Haass

Richard N. Haass, Presidente do Conselho de Relações Exteriores, serviu anteriormente como Director de Planeamento de Políticas para o Departamento de Estado dos Estados Unidos (2001-2003) e foi enviado especial do Presidente George W. Bush para a Irlanda do Norte e Coordenador para o Futuro do Afeganistão. Ele é o autor de A World in Disarray: American Foreign Policy and the Crisis of the Old Order .

 

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