UCRÂNIA - emergência
14-03-2014 - Jacques Sapir
(1) O movimento de protesto contra o poder do presidente Yanukovitch, com base no qual foi encetada uma revolta contra a corrupção, muito mais do que uma vontade de aderir à União Europeia, foi ultrapassada por elementos ultra-nacionalistas, alguns dos quais pertencentes ao pequeno grupo fascista. Estes elementos procuraram deliberadamente o confronto, atirando as forças de segurança e pondo em risco de forma imprudente outros manifestantes que se encontravam reféns do protesto. Esses militantes, que vêm em grande parte de "Pravogo Sektora " carregam uma pesada quota de responsabilidade para com todas as pessoas mortas em Maidan Square. Este número oscila entre 10.000 e 20.000, pertencentes a uma minoria no movimento de protesto, mas que se tornaram politicamente dominantes à medida que a degradação e a violência aumentavam. Foram eles que tentaram invadir o Parlamento, provocando uma reacção da parte das forças de segurança, provocando a sequência de acontecimentos que trouxeram a fuga e, em seguida, a morte de Yanukovitch.
(2) Devemos salientar que o Presidente e o Parlamento têm sido regularmente eleitos. Mas estas eleições permitiram avaliar o quanto a política ucraniana foi marcada por uma divisão entre os povos russos na sua maioria concentrados no leste do país e os ucranianos, parte dos quais vivem nas regiões que, antes de 1914, ou eram parte do Império Austro- Húngaro ou da Polônia. A Ucrânia é um país novo, nascido em 1991 mais ou menos por acaso. A sua existência é muito frágil devido a essas divisões. Esta ideia é reforçada pela trajectória económica dos últimos dez anos, que viu as relações com a Rússia num rápido desenvolvimento. A Ucrânia Oriental, fala russo, vive melhor do que a parte oeste, sendo este um problema frequentemente negligenciado. Para este último, a União Europeia representa um importante pólo de atração, mesmo que seja num plano imaginário, considerando a actual situação económica da União Europeia.
(3) O poder legal, o presidente Ianoukovitch, tem também uma parte de responsabilidades nestes trágicos acontecimentos, seja através de um uso desproporcionado da força no início das manifestações, ou através de suas hesitações que desmoralizaram uma grande parte dos seus apoiantes. Foi incapaz de se opôr a uma lógica de minoria, que se expressa até mesmo no parlamento, no momento da votação, no início de Fevereiro, da lei proibindo a utilização da língua russa e do seu estatuto de língua oficial (além do ucraniano). Esta votação parece hoje ter representado uma viragem simbólica e para isso concorreram uma lógica de luta pela democracia e contra a corrupção e uma lógica que é muito mais nacionalista - étnica. O Russo, bem como as populações de língua russa das regiões do leste da Ucrânia e da Criméia poderiam preocupar-se de forma legítima com a ruptura do pacto em que a Ucrânia independente foi fundamentada em 1991.
(4) Mas a oposição tem também uma quota de responsabilidade, nomeadamente através da sua incapacidade em fazer respeitar os acordos assinados com o Presidente. É deixar-se ultrapassar politicamente por grupos ultra-nacionalistas, que não soube controlar. Deixa-se também iludir com o apoio que a União Europeia pode ou não dar.
(5) Na sequência dos trágicos acontecimentos do final de Fevereiro, um marco absolutamente determinante, assiste-se a um colapso da legitimidade do Estado ucraniano. A dissolução das unidades de polícia, que tinham apenas de obedecer ordens, provocou uma profunda inquietação regiões orientais. Este facto está intimamente ligado ao desaparecimento do compromisso sobre qual a Ucrânia foi construída. Acrescentando que alguns na União Europeia ou por pura ignorância ou por maldade negligenciaram as consequências da quebra desse compromisso. Assistimos desde 28 de Fevereiro, ou seja, desde a tomada do poder por grupos pró-russos na Criméia, em Kharkov, em Donetsk e até mesmo em Odessa, ao resultado lógico de uma luta pela democracia e contra a corrupção, que se tornou num confronto étnico. Isto por si só poderia explicar os últimos acontecimentos, porém temos também a questão das manifestações em massa no leste da Ucrânia, onde o apoio ao Presidente eleito foi extremamente baixo durante a primeira parte do movimento (Novembro e início de Dezembro). Os grandes comícios que pudemos ver no 1 º de Março são a prova definitiva de que a população de língua russa é agora população revoltada também. É neste contexto que se deve compreender a intervenção militar da Rússia, que agora ocorre. A Rússia tem um interesse directo na segurança da região. Esta preocupação é compartilhada por alguns ucranianos como nos pudémos aperceber no 2 de Março, em que o líder da frota ucraniana não reconhece mais o governo de Kiev e depois da fragata ucraniana, operando no Golfo de Aden, ter levantado a bandeira da Rússia. Deve acrescentar-se que existem na Ucrânia não menos que 17 reactores nucleares e numerosos locais onde materiais físseis estão armazenados, o que representa mais um perigo para a segurança de toda a região.
(6) Ninguém, nestas condições, tem interesse numa divisão antagonista da Ucrânia, excepto os grupos extremistas, alguns deles agora bastante livres para percorrer o caminho em torno de Kiev. Não é do interesse da Rússia, garantindo que não iria ganhar mais do que já possui de facto, ou seja, a maioria da indústria ucraniana. Uma desagregação radical iria, então, dar à Rússia algumas vantagens, mas colocá-la-ia numa posição desconfortável num longo período de confronto com a União Europeia e os Estados Unidos. Tão pouco é do interesse da União Europeia, que teria que carregar literalmente sobre seus ombros o peso da Ucrânia Ocidental (e metade da população). Talvez para alguns ainda haja a esperança de que a integração europeia iria resolver de uma só vez todos os problemas económicos Ucrânia. Mas diz-nos a experiência que a integração sem grandes transferências monetárias está votada ao fracasso. O custo económico seria extremamente elevado, com pelo menos 12 a 15 bilhões de euros por ano durante vários anos, numa situação em que ninguém quer pagar para mais ninguém. Seria também uma situação que se desenrolaria durante vários anos, sendo impossível e enganoso avaliar a situação da Ucrânia no curto prazo. As consequências financeiras seriam também gravosas para os bancos europeus, e em particular para os austríacos, pois estão muito expostos ao risco ucraniano. Além disso, a União Europeia seria responsabilizada pela situação na Ucrânia Central e Ocidental, num cenário de grande desilusão; teria que enfrentar os princípios pró-russos naquela população. Talvez a Sra. Merkel tenha apostado muito na Ucrânia. Mas já dizia o velho ditado: "se o parte, ganha-o". A União Europeia contribuiu para a destruição da Ucrânia e vai ter que pagar por isso.
(7) É, portanto, uma necessidade urgente que os líderes da União Europeia e os líderes russos se reúnam e acordem uma saída pacífica para esta crise. Todas as ameaças feitas a partir de Washington ou de outro lugar qualquer não vão resolver ou amenizar a situação actual. É urgente estabelecer um percurso para a federalização da Ucrânia, mantendo a sua integridade territorial. Garantias materiais devem ser trazidas para a população de língua russa, e os grupos ultra-nacionalistas devem ser urgentemente desarmados e reduzidos à impotência. A Ucrânia pode viver como uma nação soberana, mas na condição de se reconstruir nos princípios que deram origem à sua fundação, em articulação com o dinamismo económico, o que implica formas específicas de integração económica. Quando isso acontecer, apenas a Rússia e a União da Eurásia estão em condições de ser um verdadeiro motor para o desenvolvimento do país. A União Europeia deve deixar de pensar que a Rússia vai financiar a Ucrânia hostil. A Rússia, por seu lado, deve entender o tropismo político e cultural para a Europa, apenas de uma parte da população ucraniana. Condições de um entendimento que permitirá ao país reencontrar a sua estabilidade, tanto económica como política, são possíveis. Na verdade, elas correspondem aos interesses da União Europeia, bem como da Rússia. Devemos esperar que a ideologia do confronto não seja vencedora e que a razão triunfará.
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