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Breve resenha (histórica) da questão da Ucrânia vs Rússia

07-03-2014 - Pippo/José Milhazes

Os povos eslavos são oriundos da Polónia, de onde se espalharam para Oeste (os sorbos, que vivem ainda no leste da Alemanha), sul (checos, eslovacos, eslovenos, croatas, sérvios, bosníacos, montenegrinos, macedónios e búlgaros*) e leste (bielorrusos, ucranianos e russos).

* A Bulgária, já habitada por eslavos, foi invadida pelos proto-búlgaros, povo guerreiro, nómada, de origem turca e proveniente da Bulgária do Volga (actual Tataristão, com capital em Kazan). Os proto-búlgaros acabaram por si integrar na sociedade eslava, eslavizaram-se e todos adoptaram o nome dos seus senhores: búlgaros.

A fixação dos eslavos do leste é bem antiga, deve remontar à época das Grande Migrações ou, mais concretamente, ao fim do Império Huno, quando os povos que estavam sujeitos aos hunos (ostrogodos, gépidas, etc.) começaram a lutar pela supremacia e se instalou uma grande confusão. Já Jordanes, na sua “Getica”, nos refere os eslavos (venethi, esclavenos e antes), bem como os esti (estónios)…

Assim, na França e Alemanha criou-se a Francia (reino dos francos), na Morávia instalaram-se checos e eslovacos, na Panónia instalaram-se os onogures (turcos) e depois os magiares (de fala fino-úgrica), ou “povo das sete flechas”, no extremo leste do continente europeu estabeleceram-se os khazares, um povo de fala turca, e no meio, entre os khazares e os francos, ficaram os eslavos.

Em meados do séc. IX os varegues, suecos salteadores, comerciantes e esclavagistas, começaram a subir os rios russos para fazer as suas depredações e comércio. Eram conhecidos por Ros’, ou Rossia (pelos gregos). Há na net um relato do diplomata ibn Fadlan (que se dirigia à corte dos khazares) que descreve esses “Rusiyyah”. Segundo as antigas crónicas, o chefe dos Ros’, Ryurik, foi convidado pelos eslavos de Kiev para os governar. Criou-se assim o Ros’ (ou Rus) de Kiev, o primeiro Estado eslavo naquelas regiões.

Com os tempo, os Rus foram-se expandindo, entraram em contacto com os povos mais importantes (romanos – bizantinos - , persas e khazares) e converteram-se ao Cristianismo grego. Este foi um passo importantíssimo porque a partir de então os russos entraram para o “concerto das Nações” europeias, o Cristianismo (ortodoxo) passou a ser parte integrante e fundamental da sua cultura e operou-se, simultaneamente, a sua separação face à Europa Ocidental.

Pela mesma época continuavam as constantes movimentações de povos nómadas, por norma de fala turca (mas não necessariamente mongolóides) os quais, normalmente, instalavam-se no sul: kipchacos, pechenegues/patzinaks, polovtsi/cumanos, karakalpaks/cherniye klobuki, etc.). os conflitos eram constantes, mas às vezes também havia fortes alianças com os russos (caso dos cherniye klobuki)

Por volta dos séc. XI o Rus desintegrou-se e iniciou-se uma época em que vários principados, todos eles governados por membros da mesma família Ryurikid, passavam o tempo a guerrear-se. Havia ainda um grão-Príncipe, um “primus inter pares”, que passava, normalmente, para o membro mais velho da família, ou seja, o título não passava de pai para filho.

A invasão mongol do séc. XIII veio arrasar por completo os Estados russos. Os mongóis impuseram a sua suserania não só sobre os eslavos mas também sobre os nómadas, alguns dos quais se escaparam para a Bulgária e Hungria, outros, que o não fizeram, acabaram por se converter ao Islão: búlgaros do Volga (tártaros de Kazan e de Astrakhan) e pechenegues e kipchacos (tártaros da Crimeia).

O suserano mongol, da Horda de Ouro*, acabou por nomear o príncipe de Moscovo como seu “delegado” para as questões russas, investindo-o no cargo de Grão-Príncipe. Moscovo ficou assim com a capacidade de cobrar impostos por toda a Rússia, o que permitiu o engrandecimento deste principado sobre todos os outros. Uma série de guerras locais pela supremacia, o ocaso da Horda de Ouro, uma batalha renhida (Kulikovo) e o fim unilateral do pagamento de tributo por parte de Moscovo aos mongóis determinou a supremacia incontestada de Moscovo sobre todo aquele território.

* “Horda” da palavra mongol “Ordu”, e de “Ouro” por causa da cor da tenda do Khan da Horda

Entretanto, a actual Ucrânia, dividida em principados independentes, acabou sendo basicamente partilhada por três potências: o entretanto tornado independente Khanato da Crimeia, a Lituânia, que em meados da Idade Média era uma potência a ter em conta (e que, com a união com a Polónia, se tornou uma das principais potência da Europa), e a Moscóvia. A região de fronteira, sobretudo a que fazia fronteira com os tártaros, muçulmanos e esclavagistas, era chamada, precisamente, de “U Krajina”, ou seja, “A Fronteira”.

Para “A Fronteira” foram viver nómadas independentes, eslavos fugidos da servidão, bandidos foragidos, homiziados e aventureiros a quem a Moscóvia concedia isenções e, claro, uma ampla liberdade, tudo com o intuito de povoar, assegurar o domínio e defender as terras das incursões tártaras (era um sistema semelhante ao usado aqui na Península nas terras tomadas ao Mouro). Assim se formaram os primeiros cossacos (de “kazak”, cavaleiro em língua turca).

No Oeste, os cossacos acabaram por ser incorporados na Comunidade Polaco-Lituana. Eram os cossacos da Zaporizhia (Zaporígia) e os chamados “cossacos do Registo”, porque eram registados pelas autoridades polacas. Estes cossacos revoltaram-se em finais do séc. XVII, massacraram dezenas de milhar de polacos e de judeus e juraram fidelidade a Moscovo, que deveria conceder-lhes em troca ampla autonomia, autonomia essa que acabou por não se verificar, pelo menos na extensão que eles pretendiam.

Em finais do séc. XVIII, os russos, em constante expansão para sul, entraram em sucessivas guerras contra os otomanos, que eram senhores dos Balcãs e suseranos do Khanato da Crimeia. Numa dessas guerras, em 1774 e qualquer coisa, na qual tomou valorosamente parte o Gomes Freire de Andrade, os turcos foram mais uma vez batidos, os russos tomaram o sul da Ucrânia e, menos de uma década depois (mais ou menos 1783), ocuparam a Crimeia.

A queda de Constantinopla, em 1453, foi simultaneamente um marco histórico (é ainda hoje a data do “Fim da Idade Média”) e foi um choque para os Ortodoxos da Moscóvia. Até então, o Império Romano do Oriente, nas sua vicissitudes, tinha sido sempre o farol da Ortodoxia, onde os cristãos ortodoxos iam buscar inspiração, quer ao nível religioso, quer ao nível da estética, das práticas da corte, etc.. Constantinopla, criada por Constantino como a “Segunda Roma”, era o Centro do Cristianismo. A queda da cidade e, pouco depois, de todo o Império, abriu um vazio que acabou por ser preenchido pela Moscóvia, que tinha adquirido a primazia entre os Eslavos Orientais e era o mais poderoso dos reinos cristãos ortodoxos. As ligações familiares entre os Príncipes moscovitas e a casa Paleologoi, dos último imperadores “romanos”, fez com que o Príncipe Ivan IV Vassilievich, o Terrível, filho de Basílio III e neto de Ivan III, o Grande, e de Sofia Paleólogo, ao ser coroado, assumisse o título de Tzar (“Imperador”, de César) e afirmasse que “duas Romas caíram, mas a Terceira Roma [Moscovo] não cairá”. Esta visão muito própria que Moscovo adquiriu relativamente a si própria viria a condicionar a sua mundividência e o seu papel na História, sobretudo no que toca à sua relação com a maioria dos Eslavos e ao Cristianismo Ortodoxo.

Durante todo o séc. XIX, tirando a ocasional invasão francesa, as coisas nesta região mantiveram-se mais ou menos calmas. Os russos, por se verem como o “irmão mais velho” dos povos eslavos e ortodoxos, desenvolveram o Pan-Eslavismo e, digamos assim, a “Pan-Ortodoxia”, ou seja, consideravam-se defensores de todos os eslavos; consideravam-se os únicos e legítimos herdeiros do Rus’ de Kiev (corrente historiográfica Russófila, que negava a herança do Rus’ de Kiev a bielorrussos e “ucranianos”, tomando-os como meras “extensões”, meros “regionalismos” dos russos”)*; e consideravam-se os defensores de todos os povos ortodoxos, incluindo os do Médio Oriente (da mesma forma que a França se assumiu como “defensora” dos católicos do Líbano, obrigando o Império Otomano a conceder as capitulações em benefício dos cristãos do Império).

Foi com base neste Pan-Eslavismo que Moscovo conduziu a sua política externa relativamente, por exemplo, aos Balcãs, em apoio da Sérvia e da Bulgária contra os Otomanos.

*Ao contrário, temos a corrente historiográfica Ucrainófila, que afirma que os únicos herdeiros do Ru’s de Kiev são os actuais ucranianos, descendentes directos (e exclusivos) ao nível territorial, cultural, linguístico, etc. Ambas as correntes, extremas e altamente politizadas, estão obviamente erradas, havendo ainda uma terceira corrente, a Eslávica Oriental, que naturalmente afirma que russos, bielorrusos e ucranianos são igualmente herdeiros legítimos do Rus’.

Em casa, foi imposta a russificação, sobretudo ao nível da escolaridade, o que atingiu, na verdade, uma camada muito reduzida da população dado que a esmagadora maioria era analfabeta. Os cossacos, apesar de terem perdido a sua autonomia, foram elevados à condição de “gendarmes” do Império Russo, e os restantes camponeses, após a abolição da servidão (que creio nem ser comum na Ucrânia) passaram a ser pequenos proprietários ou migraram para as cidades, para engrossar a massa operária.

A Revolução de 1917 provocou o desmembramento da Rússia e nessa altura surgiram os primeiros movimentos independentistas ucranianos, fomentados, em parte, pelos alemães, desejosos de “criar a confusão” entre os russos. Um efémero Estado Ucraniano sobreviveu durante uns 2 ou três anos, dividido em facções mais ou menos nacionalistas, que se digladiava com os bolcheviques, os russos “brancos” e com os anarquistas, até que acabou por sucumbir ao avanço do Exército Vermelho. Subsistiram contudo os movimentos nacionalistas, um dos quais, liderado por Stefan Bandera, acabou por colaborar com a Alemanha Nazi aquando da invasão da URSS em 1941. Este movimento independentista é o precursor ideológico dos actuais movimentos de extrema-direita ucranianos, nomeadamente dos mais próximos ao neo-nazismo.

Os anos 30 na URSS foram particularmente difíceis. Por um lado, Estaline, que via conspirações por todo o lado, encetou, através da sua OGPU/NKVD, uma campanha de liquidação de adversários, reais ou imaginários. Foi a Grande Purga em que milhões de membros do PC, quase toda a cúpula dirigente, velhos bolcheviques próximos de Lenine, milhares de oficiais das forças armadas, intelectuais, funcionários, operários, camponeses, familiares e amigos dos acusados, foram sumariamente exterminados ou remetidos para campos de morte lenta na Sibéria e Círculo Polar Árctico.

Em simultâneo, operaram-se reformas económicas, a mais significativa das quais foi a colectivização forçada dos campos, medida “científica” que visava organizar, racionalizar, a produção alimentar, aumentando-a, permitindo assim libertar posterior mão-de-obra para a indústria. O problema é que a colectivização, para além de ser forçada, levando à resistência passiva ou activa dos agricultores, foi mal conduzida, com gestão por “objectivos”, objectivos esses que teriam de ser alcançados”, sob pena de represálias sobre os gerentes das colectividades. Os dados da produção acabaram por ser empolados logo, falseados.

Na mesma época, houve uma sucessão de maus anos agrícolas, num fenómeno que, nos Estados Unidos, foi chamado de “Dust Bowl” de igualmente maus anos agrícolas. A diferença é que, enquanto nos EUA houve êxodo rural, na URSS os camponeses, impedidos de sair das suas propriedades, foram obrigados a entregar as suas quotas de produção… quotas essas que tinham sido exageradas e estavam muito acima da realidade! O resultado foi uma campanha de opressão e o confisco de géneros alimentícios para alimentar as cidades que originou uma terrível fome conhecida como Holomodor que afectou todo o sul da URSS e, em especial, a zona de produção agrícola por excelência da URSS, ou seja, a Ucrânia.

O Holomodor matou cerca de 7 milhões de pessoas.

A implosão da URSS e a independência das Repúblicas soviéticas, mais ou menos dentro das suas fronteiras oficiais (com excepções na Arménia-Azerbeijão, Moldávia e Geórgia) originou não só conflitos étnicos (Cáucaso, Ásia Central, países bálticos) como colocou em campo visões étnicas e historiográficas diferentes em que as nacionalidades emergentes procuraram alicerçar a sua legitimidade e “antiguidade” em mitos fundacionais, transposições e interpretações anacrónicas do “ethnos” e do “locos” e, não raras vezes, na oposição à etnia dominante, ou seja, aos russos.

No caso da Ucrânia, a necessidade de afirmação da identidade nacional implicou recuar-se aos tempos históricos e proto-históricos, da fundação de Kiev no séc. V (anterior, portanto, a Moscovo), e à invenção de uma “Nova História” que fizesse a ligação directa e exclusiva do Rus’ de Kiev à moderna nação ucraniana, à identidade “livre, independente, tolerante e europeia” dos cossacos (por oposição à identidade “servil, opressora, intolerante e asiática” dos russos) e, claro, à recuperação e elevação de “combatentes pela Liberdade ucraniana” à condição de precursores da independência e Heróis Nacionais, caso do já citado Stefan Bandera.

No plano político, esta necessidade e posturas implicaram, necessariamente, um afastamento, quando não mesmo rejeição, por parte das autoridade e dos elementos mais nacionalistas, predominantes no Oeste do país, da Rússia.

Concomitantemente, para cimentar essa afirmação independentista e reforçar o carácter “europeu” da Ucrânia, as políticas adoptadas implicaram uma aproximação à União Europeia e à NATO.

Contudo, devido ao alargamento das fronteiras administrativas da Ucrânia (razão porque a Crimeia, que sempre foi russa, passasse a ser ucraniana em 1954) e devido também a causas migratórias, parte da população do país tinha, ou origem, ou cultura russa, e não se revia na linha de pensamento nacionalista vigente.

A extrema e crescente debilidade económica da Ucrânia, a sua dependência, energética e comercial, relativamente à Rússia, a oposição entre a linha de pensamento russófila ou eslávica oriental e a ucrainófila, a oposição entre o mantimento de laços estreitos com Moscovo ou com o Ocidente (com incorporação na NATO e UE), veio a por a lume a clivagem étnica que se verifica actualmente, que faz com que a revolução contra o presidente eleito tenha forte adesão no Ocidente e Centro do país, mas fraca ou nula adesão no Leste, Sul e, sobretudo, na Crimeia.

 

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