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A guerra interna

11-11-2016 - Martín Granovsky

Os Estados Unidos possuem 5% da população mundial e 25% dos presos do mundo - são 2,3 milhões contra cerca de 357 mil em 1970.

Assim como na Argentina e no Brasil, a sociedade nos Estados Unidos pode ser avaliada por índices ilustrativos que acompanham os demais, como o desemprego ou a taxa de crescimento. Os cidadãos que votarão hoje representam 5% da população mundial, mas possuem 25% dos presos do mundo – são 2,3 milhões contra cerca de 357 mil em 1970.

Esse tipo de realidade oculta estadunidense, comum em alguns filmes de Michael Moore (as armas e a desigualdade em “Tiros em Columbine”, ou a selvageria conservadora em “Capitalismo: uma história de amor”), também está presente em “A 13ª Emenda”, um documentário da diretora californiana Ava DuVernay – estreou recentemente no Netflix.

“Somos produto daquilo que os nossos ancestrais escolheram, mas somente se somos brancos”, diz o texto do filme. “Se somos negros, somos aquilo que os nossos ancestrais rejeitaram”. E agrega: “Estamos aqui, todos juntos, como resultado dessas escolhas históricas, e temos que entender isso se queremos escapar dessa realidade”.

A 13ª emenda da Constituição dos Estados Unidos é a que consagrou a abolição da escravidão, em 1865. A partir daquele ano, escravizar uma pessoa passou a ser inconstitucional. Entretanto, há uma cláusula que determina uma exceção “como castigo por um delito”. Uma porta aberta para a perseguição.

Nos tempos da escravidão, quatro milhões de pessoas estavam sujeitas a ser propriedade de alguém. Essas pessoas formavam parte da economia do sul. Quando foram liberados, devido à cláusula de exceção, surgiu uma enorme onda de prisões de pessoas negras, condenadas por “delitos” absurdos, como jogar lixo na rua ou até mesmo vagabundagem. Assim, elas eram sentenciadas a penas de trabalhos forçados, na construção de ferrovias ou outro tipo de obras públicas.

Junto com esse neo-escravismo, floresceu o estereótipo do negro criminoso, diabólico, um sujeito dedicado a estuprar e matar. Segundo o documental, uma das chaves para a construção desse mito foi o filme “O nascimento de uma nação”, de D. W. Griffith, de 1915, adaptação da novela “The Clansman” (“O homem do clã”), de Thomas Dixon Jr., editada em 1905. Em 1998, a banda britânica Iron Maiden compôs uma canção com o mesmo nome em alusão aos membros da Ku Klux Klan. “Se os ancestrais pudessem escutar o que acontece, se revirariam em suas tumbas”, diz a letra como se estivesse lendo os pensamentos de um membro da KKK. “Quando chegar o momento, tomarei o que é meu/ Sou um homem do clã”. No filme de 1915, Griffith teve a ideia de reproduzir as cerimônias onde a KKK queima uma cruz durante a noite, costume que até aquele então a organização não tinha, e passou a adotar depois do filme, devido à sua espetacularidade.

Depois do filme, o país viu aumentar assustadoramente os casos de linchamentos. Muitos afro-americanos fugiram do sul do país, buscando melhor vida no oeste (em Los Angeles ou San Francisco) e no norte (em Nova York ou Chicago).

As políticas de segregação vieram depois, como uma forma de estilizar a ilegalidade. A discriminação passou ser lei. Os negros não podiam votar, não podiam entrar ou estar em alguns lugares públicos, não podiam desfrutar da mesma praia de Miami usada pelos brancos.

“Cada vez que você se sente indignado por uma proibição, por exemplo, a de entrar pela porta principal, ou cada que vez que não te deixaram votar ou ir à escola, era como carregar o peso injúria sobre as costas”, diz Bryan Stevenson, advogado e fundador do movimento Iniciativa para uma Justiça Igualitária. Nos Anos 50 e 60, o movimento pelos direitos civis dos negros, encabeçado por Martin Luther King, fez a luta pela igualdade se espalhar por todo o país. Em seus atos, alguns cartazes traziam mensagens tão simples como: “Eu também sou um ser humano”.

O presidente Lyndon Johnson cedeu ao movimento em favor dos direitos civis, um século depois da abolição da escravidão. A reação foi um estigma, com esta mensagem implícita: “nós damos a eles liberdade, e nos devolverão cometendo mais delitos”. O crime aumentou no país nos Anos 70, simplesmente porque a população havia aumentado, devido aos nascidos após a Segunda Guerra.

Em 1970, a população carcerária era de pouco mais de 357 mil pessoas.

“Nessa década, em plena Era Nixon, novamente se viu um discurso que visava associar o crime com a raça”, explica Angela Davis, hoje professora emérita da Universidade da Califórnia, durante o documentário. Nos Anos 60 e 70, ela foi dirigente de movimentos em favor dos direitos dos afro-estadunidenses e contra a Guerra do Vietnã, e militou no Partido Comunista. Para Richard Nixon, o conceito de crime incluía os protestos em favor dos direitos civis dos negros e dos gays, que também eram combatidos segundo a doutrina de “guerra à criminalidade”. Seus discursos destacavam sempre duas palavras: leu e ordem. Nixon iniciou outra retórica destinada a perdurar. Foi o primeiro em convocar a “uma guerra total contra as drogas perigosas”. Ali começou a onda de prisões arbitrárias, pessoas que eram detidas pelo simples fato de portar um baseado. Uma onda que ainda hoje se mantém vigente.

No começo dos Anos 80, a população carcerária já havia quase dobrado: 514 mil pessoas.

Em 1982, o então presidente Ronald Reagan internacionalizou a guerra moderna contra as drogas, no sentido em que Nixon havia proclamado na década anterior.

A população carcerária em 1985 já era de 759 mil.

Malkia Cyril investigou o discurso dos meios de comunicação e mostra como os negros passaram a ser cada vez mais marginalizados nas notícias policiais. “O discurso do medo ajuda a justificar isso, a dizer que se deve jogar as pessoas no lixo”, reclama Cory Greene, ex-preso e cofundador da ONG HOLLA. As gangues e seus integrantes, a maioria adolescentes, passaram a ser chamados de “superpredadores”. O documentário mostra até mesmo a jovem Hillary Clinton usando esse termo, e embora ela não fizesse diferenças raciais em seu discurso, na prática, a expressão funcionava como uma forma de estigmatizar os garotos negros.

O filme também mostra como uma parte da comunidade afro-estadunidense passou a suspeitar de si mesma. Outra figura presente é a de um empresário que naquele então já era famoso. Sim, Donald Trump, que aparece defendendo a pena de morte para jovens supostamente autores de crimes violentos, num famoso caso de assassinato no Central Park – anos depois, uma prova de DNA demostraria a inocência dos acusados pelo caso.

“Vocês querem cuidar dos criminosos mais que das vítimas?”, perguntava George Bush, o pai, na campanha de 1988. “Se não querem isso, votem por mim”. E foi o que aconteceu. Bush venceu a eleição, e um dos fatores que favoreceram o seu triunfo foi a repercussão do caso de Willie Horton, um presidiário que cometeu um crime enquanto gozava de uma saída em liberdade condicional – benefício carcerário defendido pelo seu oponente, o candidato democrata Michael Dukakis.

Em 1990, a população carcerária estadunidense já era de mais de 1,1 milhão de pessoas.

Quando Bill Clinton ganhou as eleições de 1992 falando em recuperar a economia, se desenhou um plano massivo de construção de prisões, que foi impulsado enquanto se militarizava as polícias, inclusive nas zonas rurais, fazendo com que todos os departamentos de segurança do país fossem dotados de equipes SWAT.

No ano 2000, os preses já eram mais de dois milhões, e o próprio Clinton admitiu que a ênfase havia sido exagerada – Hillary chegou a aceitar esse erro, num dos debates com Bernie Sanders.

Por trás dessas campanhas de encarceramento massivo, estava o ALEC (sigla em inglês do Conselho Americano para Relações Legislativas), um lobby apoiado pelas grandes corporações, encarregado de conseguir votos para elas, e também de promover a venda de armas.

Um de cada 17 homens brancos corre o risco de ser preso nos Estados Unidos durante a sua vida. No caso dos negros, essa proporção aumenta para um em cada três. Os negros são 6,5% da população total do país, mas representam cerca de 40,2% dos presos. São os escravos de um Estado que escolherá hoje a pessoa que exercerá a presidência nos próximos anos. Não sabemos se quem ocupará o cargo terá a coragem de pôr fim à matriz perversa e menos conhecida da 13ª Emenda ou se reforçará essa doutrina, dando um exemplo para os conservadores de todo o mundo.

Tradução: Victor Farinelli

Fonte: Página/12

 

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