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Casamento entre o digital e a austeridade

21-10-2016 - Evgeny Morozov

Resistir à uberização do mundo
A empresa Uber, ao transformar particulares que possuem um veículo em motoristas ocasionais sem estatuto, não se limitou a suscitar a reacção dos táxis profissionais: o seu nome simboliza agora a ligação entre novas tecnologias e precarização. O êxito dos gigantes de Silicon Valley faz-se acompanhar por uma vaga de desregulamentações. E se os dirigentes políticos recuperassem o controlo?

Há quase dez anos que estamos reféns de duas transformações. A primeira é obra de Wall Street; a segunda, de Silicon Valley. Ambas se completam às mil maravilhas no número do polícia bom e polícia mau: Wall Street defende a escassez e a austeridade; Silicon Valley exalta a abundância e a inovação. Primeira transformação: a crise financeira mundial, que se saldou num salvamento do sistema bancário, transformou o Estado social num campo em ruínas. O sector público, última barreira contra as incursões da ideologia neoliberal, saiu da crise mutilado, senão totalmente aniquilado. Os serviços públicos que sobreviveram aos cortes orçamentais tiveram de aumentar os preços ou foram forçados a experimentar novas tácticas de sobrevivência. Assim, algumas instituições culturais tiveram, à falta de melhor, de fazer apelo à generosidade dos particulares, recorrendo ao financiamento participativo: tendo as subvenções públicas desaparecido, não tiveram outra escolha senão entre o populismo de mercado e a morte.

A segunda transformação é, pelo contrário, bastante bem vista. Neste caso, em que está em causa digitalizar tudo e ligar tudo à Internet – fenómeno perfeitamente normal, a acreditar nos investidores capitalistas –, as instituições devem escolher entre a digitalização e a morte. Silicon Valley garante-nos que a magia da tecnologia vai espalhar-se com toda a naturalidade pelos mais recônditos cantos da nossa vida. Ouvindo-os, parece que a oposição à inovação equivale a renunciar aos ideais do Iluminismo. Dirigentes da Google e do Facebook, Larry Page e Mark Zuckerberg seriam os Diderot e os Voltaire do nosso tempo – reencarnados como empreendedores tecnófilos e associais.

Mas aconteceu esta coisa estranha: acabámos por acreditar que a segunda transformação nada tinha a ver com a primeira. Assim, relatámos o desenvolvimento dos cursos na Internet (os MOOC: massive open online courses ) sem referir as reduções orçamentais que, ao mesmo tempo, atingiam as universidades. Não, a febre dos MOOC era apenas a consequência natural da inovação promovida por Silicon Valley! Oshackers, tornados empreendedores, teriam metido na cabeça «agitar» a universidade tal como antes haviam agitado os domínios da música e do jornalismo.

Da mesma maneira, agimos como se não houvesse qualquer ligação entre, por um lado, a multiplicação das aplicações concebidas para seguir o nosso estado de saúde e, por outro, os problemas que uma população envelhecida, que sofre já de obesidade e outras doenças, coloca a um sistema de saúde fragilizado: não, este último atravessa apenas o seu «momento Napster» [1]. Os exemplos deste tipo abundam, mostrando que a narrativa exaltante da transformação tecnológica eclipsou a outra, bem mais deprimente, da transformação política e económica.

Ora, é preciso sublinhar que estes dois fenómenos estão entrelaçados e que o pano de fundo do evangelho da inovação não é nada reluzente. Ilustração vinda de Barcelona: como muitas instituições culturais espanholas, um clube de stand-up (one-man-show humorístico), o Teatreneu, regista uma diminuição de públicos desde que o governo, procurando desesperadamente cobrir as suas necessidades de financiamento, decidiu aumentar o imposto sobre as vendas de bilhetes de 8% para 21%. Os administradores do Teatreneu encontraram então uma solução engenhosa: estabelecendo uma parceria com a agência de publicidade Cyranos McCann, equiparam as costas de cada cadeira com tablets de última moda capazes de analisar as expressões faciais. Com este novo modelo, os espectadores podem entrar gratuitamente, mas têm de pagar 30 cêntimos por cada riso reconhecido pelo tablet – estando a tarifa máxima fixada em 24 euros (ou seja, 80 risos) por espectáculo. Ao mesmo tempo, o preço médio do bilhete aumentou 6 euros. Uma aplicação móvel facilita o pagamento. Além disso, cada um pode partilhar com os amigos selfies de si rindo a bandeiras despregadas. Nunca foi tão curto o caminho da gargalhada até ao viral.

Do ponto de vista de Silicon Valley, este é um exemplo perfeito de uma boa «transformação»: a proliferação dos captadores inteligentes ligados à Internet cria novos modelos de empresa e novas fontes de rendimentos. Além disso, gera numerosos empregos nos intermediários, fabricantes de material ou criadores de programas informáticos. Nunca foi tão simples comprar serviços e produtos: os nossos telefones inteligentes fazem-no por nós. Em breve, os nossos bilhetes de identidade podem vir a fazer a mesma coisa: a MasterCard já chegou a acordo com o governo nigeriano para lançar um bilhete de identidade que serve também de cartão de crédito.

Problemas que não se colocam

Para Silicon Valley, trata-se apenas de uma renovação tecnológica, de «perturbar» o dinheiro líquido. Esta explicação pode satisfazer, e até atrair, empreendedores e investidores em capitais de risco, mas por que deverá toda a gente aceitá-la sem discussão? É preciso estar totalmente cego pelo amor à inovação – a verdadeira religião do nosso tempo – para não ver o seu verdadeiro preço: o facto de, pelo menos em Barcelona, a arte se ter tornado mais cara. Este quadro tecnocêntrico, dissimulando a existência da perturbação financeira, oculta a natureza e as razões das transformações em curso. Regozijemos por podermos comparar mais, mais facilmente. Mas não devíamos ficar preocupados pelo facto de, graças a esta mesma infra-estrutura, ser também infinitamente mais fácil debitar a nossa conta bancária? Há sem dúvida bastante dinheiro a ganhar com a «transformação» do uso das moedas. Mas será isso realmente desejável? O dinheiro líquido, que não deixa vestígio, representa uma barreira significativa entre o cliente e o mercado. A maior parte das transacções efectuadas em dinheiro de papel são singulares, no sentido em que não estão ligadas umas às outras. Quando se paga com o telemóvel, ou quando a nossa selfie é registada para a posteridade, ou mesmo partilhada numa rede social, produz-se um traço que os publicitários e outras empresas são susceptíveis de explorar.

Porque não é por acaso, aliás, que uma companhia publicitária está na origem da experiência de Barcelona: o registo de cada transacção é uma bom meio para recuperar dados que servirão para personalizar a publicidade [2]. O que significa que nenhuma das nossas transacções electrónicas está realmente terminada: os dados que elas geram permitem, não só seguir o nosso rasto, como também estabelecer uma ligação entre actividades que talvez preferíssemos manter separadas. Subitamente, o jogo do riso num clube de stand-up aproxima-se dos livros que se comprou, dos sítios Internet que se frequentou, das viagens que se efectuou, das calorias que se queimou, etc. Em suma, com as novas tecnologias, todos os actos e gestos de cada um são integrados num perfil único monetarizável e optimizável.

Esta transformação passa pela tecnologia, mas as suas origens encontram-se noutro lado. Favorecida pelas crises políticas e económicas, ela terá uma profunda incidência sobre o nosso modo de vida e as nossas relações sociais. Parece difícil preservar valores como a solidariedade num ambiente tecnológico fundado em experiências personalizadas, individuais e únicas. Silicon Valley não mente: a nossa vida quotidiana está de facto alterada; mas por forças bem mais dissimuladas do que a digitalização ou a conectividade. O fetiche da inovação não deve servir de pretexto para nos fazer encaixar o custo das recentes turbulências económicas e políticas.

Foi isto que os motoristas de táxi compreenderam quando confrontados com o crescimento da Uber, uma empresa que propõe a particulares em busca de um complemento de rendimento que transformem o seu veículo em táxi, e que os liga a clientes. Asfixiados, os profissionais protestaram. Como as autoridades de regulação, da Índia a França, atacaram a Uber, a sociedade californiana lançou-se numa operação de sedução. Os seus patrões, que antes conhecemos tão virulentos e surdos às críticas, afirmam agora alto e bom som que é preciso regular o sector. Parecem ter também compreendido por que motivo a sua empresa é um alvo fácil: as suas práticas são, simplesmente, demasiado ignóbeis. No Inverno de 2014, quando estava a ser sujeita a fortes críticas, a Uber teve de desistir de obrigar os clientes a pagarem tarifas exorbitantes quando a procura aumentava, nas horas de ponta. Mas fez mais. Num genial golpe publicitário, propôs também a um dos seus mais ferozes adversários, a cidade de Boston, que acedesse ao tesouro que constituem os dados (tornados anónimos) relativos aos itinerários, para a ajudar a limitar os engarrafamentos e a melhorar o planeamento urbano. É evidentemente uma pura coincidência que o estado do Massachusetts, onde se encontra Boston, tenha recentemente reconhecido as plataformas de partilha de táxis como um meio de transporte legal, eliminando ao mesmo tempo um dos principais obstáculos que a Uber enfrentava…

A Uber inscreve-se na esteira de star-ups mais modestas que tornam os seus dados acessíveis aos urbanistas e aos municípios, ficando estes últimos encantados por poderem dizer que, com estas informações, o planeamento urbano se tornará mais empírico, mais participativo, mais inovador. No ano passado, a administração dos transportes públicos do Oregon assinou um acordo com a Strava (aplicação para smartphone muito popular que segue os movimentos dos corredores e dos ciclistas) e pagou uma soma importante para aceder aos dados relativos aos itinerários seguidos pelos ciclistas utilizadores da aplicação, com o objectivo de melhorar as ciclovias e conceber trajectos alternativos.

O facto de a Uber surgir como um reservatório de dados indispensáveis aos urbanistas está em absoluta sintonia com a ideologia solucionista de Silicon Valley, que consiste em resolver com urgência e por via digital problemas que não se colocam, ou não se colocam nestes termos. Como as empresas de tecnologia se apoderaram de um dos mais preciosos recursos actuais – os dados –, elas ganharam ascendente sobre os municípios tão desprovidos de dinheiro como de imaginação, e podem apresentar-se como benévolas salvadoras dos apagados burocratas que povoam as administrações.

O problema é que as cidades que se juntam à Uber correm o risco de desenvolver uma dependência excessiva em relação aos seus fluxos de dados. Por que motivo aceitar que a empresa se torne o intermediário único nessa matéria? As cidades, em vez de deixarem a empresa aspirar toda a informação relativa às deslocações, deviam procurar obter estes dados pelos seus próprios meios. Em seguida, poderiam autorizar as empresas a utilizá-los para implantar os seus serviços. Se a Uber se mostra tão eficaz, é porque ela controla a fonte de produção de dados: os nossos telefones dizem-lhe tudo o que ela precisa de saber para planear um itinerário. Mas se as cidades assumissem o controlo destes dados, a empresa, que quase não possui quaisquer activos, não atingiria os 40 mil milhões de dólares de valorização anual. É duvidoso que seja assim tão caro conceber um algoritmo capaz de relacionar a oferta e a procura… Cidades como Nova Iorque e Chicago, sem dúvida sob pressão das companhias de táxis, parecem ter finalmente compreendido que precisavam de reagir. Uma e outra estão a tentar lançar uma aplicação centralizada, capaz de enviar táxis tradicionais com a eficácia da Uber. Além de contrariar o domínio desta última, o programa impedirá que os dados relativos aos itinerários se tornem uma mercadoria dispendiosa – que as cidades teriam de comprar.

Contudo, o verdadeiro desafio consiste em saber como fazer com que estas aplicações funcionem com outras modalidades de transporte. A visão da Uber surge agora com clareza: instale uma aplicação no seu telefone e um carro virá buscá-lo. O mínimo que se pode dizer é que isto não traduz uma imaginação extraordinária. Esta abordagem funciona nos Estados Unidos, onde não se anda a pé e onde os transportes públicos são, a maior parte do tempo, inexistentes. Mas por que haveria este modelo de ser reproduzido no resto do mundo? Não é porque andar a pé não traz dinheiro à Uber que este modo de transporte deve ser excluído. A crítica do solucionismo aplica-se aqui perfeitamente: não só este dá uma definição demasiado estreita dos problemas sociais, como o faz, habitualmente, em termos que beneficiam, antes de mais, os criadores da «solução».

Quem possui os dados domina os transportes

Imagine que a aplicação desenvolvida pelo seu município o pode informar sobre todas as possibilidades de transporte ao seu dispor (excepto a Uber): poderá pegar na bicicleta que o espera na esquina da rua, saltar para um minibus cuja itinerário seja adaptado ao seu destino e ao dos outros passageiros, em seguida caminhar o resto do trajecto para apreciar os encantos do comércio de bairro. Projectos como este foram já lançados em algumas cidades. Helsínquia criou, em colaboração com a start-up Ajelo, a Kutsuplus, intrigante cruzamento da Uber com um sistema de transporte público tradicional. Os passageiros solicitam um transporte de vaivém pelo telefone e a aplicação calcula a melhor maneira de conduzir toda a gente ao seu destino, a partir de dados em tempo real. Dá também uma estimativa do tempo de trajecto, tanto com a Kutsuplus como com outros meios de transporte.

O êxito de projectos como este depende de vários factores. Em primeiro lugar, os municípios não devem considerar a Uber como a única forma de melhorar a eficácia dos transportes públicos, e ainda menos de reduzir os engarrafamentos (e podemos ter a certeza que os dados que ela fornece nunca indicarão que são precisos menos táxis ou mais ciclovias ou vias pedonais). Em seguida, os combates relativos aos serviços públicos serão vencidos pelos que possuem os dados e pelos receptores que os produzem. Deixando tudo isto à Uber – ou, pior ainda, às gigantescas empresas de tecnologia que procuram apoderar-se de uma parte do suculento mercado das «cidades inteligentes» –, privamo-nos de experimentações que poderão permitir que as colectividades organizem os seus transportes como bem entendem.

A parceria entre a Uber e a cidade de Boston levanta, além disso, uma questão política: podemos limitar-nos a autorizar a Uber a «possuir» os dados dos seus clientes, queira ela utilizá-los como trunfo nas negociações com os municípios ou simplesmente vendê-los ao melhor preço? Sem ter realmente colocado a questão a quem quer que seja, a Uber respondeu pela afirmativa. Como a Google e o Facebook haviam feito antes dela.

A realidade é, contudo, mais matizada, nomeadamente porque os captadores integrados nas infra-estruturas públicas podem reproduzir estes dados com bastante facilidade. Imagine-se o que seria capaz de fazer uma rede que combinasse leitores automáticos de placas de matrícula, de estradas e de semáforos inteligentes: poderia identificar e seguir veículos Uber exactamente como o fazem os smartphones dos seus condutores e passageiros. Não se trata de defender um reforço da vigilância, mas simplesmente de sublinhar que a Uber pretende ser proprietária de dados que não lhe pertencem.

Não é porque a Uber vem da Califórnia, região conhecida pela miserável qualidade dos seus transportes públicos, que devemos acreditar que os veículos individuais a motor são o futuro dos transportes. Infelizmente, é isso que pode acontecer por causa da redução dos investimentos nas infra-estruturas públicas, A solução será restabelecê-los e, para que isso aconteça, combater as políticas de cortes orçamentais.

EVGENY MOROZOV
Autor de Le Mirage numérique. Pour une politique des big data , a publicar em Setembro nas edições Les Prairies ordinaires, Paris.

Notas
[1] Nome do sítio de partilha de ficheiros musicais cujo sucesso, no início da década iniciada em 2000, havia semeado o pânico na industria discográfica.
[2] Ler Marie Bénilde, «A perseguição metódica do internauta revoluciona a publicidade», Le Monde diplomatique – edição portuguesa , Novembro de 2013.

 

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