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Será o fim do fenómeno Trump?

16-09-2016 - Ignacio Ramonet

Sete de cada dez estadunidenses não se sentiriam 'orgulhosos' em tê-lo como presidente, e somente 43% o consideram 'qualificado'.

Segundo as pesquisas, embora faltem dois meses para as eleições presidenciais de 8 de novembro, as coisas parecem já estar claras no que diz respeito ao resultado: a candidata do Partido Democrata Hillary Clinton seria eleita, vencendo também uma chuva de preconceitos e ataques machistas, e se tornaria, assim, a primeira mulher a governar os destinos da principal potência mundial do nosso tempo.

A pergunta é: o que aconteceu com o candidato do Partido Republicano, o tão “irresistível” e midiático Donald Trump?

Por que, de repente, o magnata desabou nas pesquisas? Sete de cada dez estadunidenses não se sentiriam “orgulhosos” em tê-lo como presidente, e somente 43% o consideram “qualificado” para se sentar na mesa do Salão Oval – enquanto 65% acha que Clinton sim é qualificada.

Vale recordar que as eleições presidenciais nos Estados Unidos não são nacionais, nem diretas. Se trata de um conjunto de cinquenta eleições locais, uma por Estado, que determinam um número pré estabelecido de 538 grandes eleitores, e são eles, na verdade, os que escolheram o ou a chefe(a) do Estado. Portanto, as pesquisas de âmbito nacional têm apenas um valor indicativo, e relativo.

Em meados de agosto, diante de pesquisas tão negativas, o candidato republicano remodelou sua equipe de trabalho, e nomeou um novo chefe de campanha, Steve Bannon, diretor do ultraconservador Breitbart News Network. Também modificou seu discurso direcionados a dois grupos de eleitores decisivos, os afro-americanos e os latinos.

Será suficiente para Trump inverter a tendência e se impor na reta final da campanha? Não se pode descartar. Porque este personagem atípico, com suas propostas grotescas e suas ideias sensacionalistas, tem superado até agora todos os prognósticos. Venceu os pesos pesados republicanos, como Jeb Bush, Marco Rubio e Ted Cruz, que contavam com o apoio firme do establishment do partido. Eram poucos os que apostavam nele nas primárias, mas mesmo assim, ele carbonizou seus adversários, os reduziu a cinzas.

Para entender o fenómeno, é importante considerar que desde a crise financeira de 2008 – da que ainda não saímos – nada mais é como era antes, em lugar nenhum do mundo.

Os cidadãos estão profundamente desencantados. A própria democracia, como modelo, vem perdendo credibilidade. Os sistemas políticos foram sacudidos até as raízes. Na Europa, por exemplo, estão se multiplicando os terremotos eleitorais – entre eles, o Brexit. Os grandes partidos tradicionais estão em crise. E em todas as partes percebemos o avanço das alianças de extrema-direita (França, Áustria e países nórdicos) ou de partidos antissistema e anticorrupção (Itália e Espanha). A paisagem política foi radicalmente transformada.

Esse fenómeno chegou também aos Estados Unidos, um país que já conheceu, em 2010, uma onda populista devastadora, então encarnada pelo Tea Party. A ascensão do multimilionário Donald Trump na corrida pela Casa Branca é como um prolongamento daquele fenómeno, e constitui uma revolução eleitoral que nenhum analista soube prever. Embora persista, em aparência, a velha dicotomia entre democratas e republicanos, a ascensão de um candidato tão heterodoxo como Trump sugere um verdadeiro sismo político. Seu estilo directo, seu discurso maniqueísta e reducionista, apelando ao populismo e aos instintos básicos de certos setores da sociedade, muito diferente do tom habitual dos políticos estadunidenses, lhe conferiu um caráter de autenticidade aos olhos do sector mais decepcionado do eleitorado da direita. Para muitos eleitores irritados pelo “politicamente correcto”, que acreditam que já não se pode dizer o que se pensa, sob pena de ser acusado de racista, a “palavra livre” de Trump sobre os latinos, os imigrantes ou os muçulmanos é percebida como um autêntico alívio.

O candidato republicano tem sabido interpretar o que poderíamos chamar de “rebelião das bases”. Melhor que ninguém, ele percebeu a fratura cada vez mais amplia entre as elites políticas, econômicas, intelectuais e midiáticas, por uma parte, e a base do eleitorado conservador, por outra. Seu violento discurso anti-Washington e anti-Wall Street seduziu particularmente os eleitores brancos, pouco cultos e empobrecidos pelos efeitos da globalização econômica.

Precisemos também que o discurso de Trump não é semelhante ao de um partido neofascista europeu. Não é um ultra-direitista convencional. Ele mesmo se define como um “conservador com bom senso” e sua posição, no leque da política, se situaria mais exatamente na direita da direita.

Empresário multimilionário e superestrela da tele-realidade, Trump não é um antissistema, e obviamente, tampouco é um revolucionário. Ele não censura o modelo político em si, mas sim os políticos que o vem pilotando. Seu discurso é emocional e espontâneo. Apela aos instintos, às tripas, não ao cérebro ou à razão. Fala para essa parte do povo estadunidense entre a qual vem crescendo o desânimo e a insatisfação. Se dirige aos que estão cansados da velha política, da “casta”. E promete injetar honestidade no sistema, renovar nomes, rostos e atitudes.

Os meios de comunicação vêm dando grande repercussão a algumas de suas declarações e propostas mais odiosas e surrealistas. Recordemos, por exemplo, sua afirmação de que todos os imigrantes ilegais mexicanos são “corruptos, delinquentes e estupradores”. Ou seu projeto de expulsar 11 milhões de imigrantes ilegais latinos, colocando-os em ônibus e levando-os de volta ao México. Ou sua promessa inspirada na série Game of Thrones, de construir um muro fronteiriço de 3 mil quilômetros no sul do país, passando por vales, montanhas e desertos, para impedir a entrada de imigrantes latino-americanos, cujo orçamento seria de 21 biliões de dólares – os quais seriam financiados pelo governo do México. Nesse mesmo estilho, também anunciou que proibiria a entrada de todos os imigrantes muçulmanos, e criticou com veemência os pais de um militar norte-americano de fé muçulmana, Humayun Khan, morto em combate em 2004, no Iraque.

Também fazem parte do seu show afirmações sobre o matrimónio tradicional, formado por um homem e uma mulher – segundo ele, “a base de uma sociedade livre” –, junto com uma crítica à decisão do Tribunal Supremo de considerar que o matrimônio entre pessoas do mesmo sexo é um direito constitucional. Trump apoia as chamadas “leis de liberdade religiosa”, impulsadas pelos conservadores em vários Estados, para justificar os que se negam a prestar serviços a pessoas LGTB. E não nos esqueçamos de suas declarações sobre o aquecimento global, que Trump considera uma “farsa”, um conceito “criado por e para os chineses, para fazer com que o sector de industria norte-americano perda competitividade”.

Este catálogo de horripilantes e detestáveis idiotices têm sido massivamente difundido pelos meios dominantes, não só nos Estados Unidos como no resto do mundo. E a principal pergunta que muita gente se faz é: como é possível que um personagem com tão lamentáveis ideias consiga uma audiência tão considerável entre os eleitores norte-americanos – que, obviamente, não podem estar todos lobotomizados? Alguma coisa está fora da ordem.

Para responder a essa pergunta, é preciso discernir conceitos em meio à muralha informativa, e analisar mais de perto o programa completo do candidato republicano, para descobrir os sete pontos fundamentais que ele defende, silenciados pelos grandes meios.

1) Os jornalistas não o perdoam, em primeiro lugar, seus ataques frontais ao poder midiático. Criticam o fato dele estimular constantemente o público em seus comícios a vaiar os repórteres ou a chamar os meios de “desonestos”. Trump costuma afirmar: “não estou competindo contra Hillary Clinton, estou competindo contra os corruptos meios de comunicação”. Numa mensagem recente por twitter, ele escreveu: “se os repugnantes e corruptos meios de comunicação me cobrissem de forma honesta, e não injetassem significados falsos às palavras que digo, eu estaria vencendo a Hillary por uns 20% de vantagem”.

Por considerar a cobertura midiática injusta ou parcializada, o candidato republicano não duvidou em retirar as credenciais de imprensa de vários meios importantes que cobriam a sua campanha, entre eles o Washington Post, o Huffington Post e o BuzzFeed. Inclusive se atreveu a atacar a Fox News, a grande cadeia de televisão caracterizada por seu direitismo panfletário, apesar dela o apoiar claramente como candidato favorito…

2) Outra razão pela qual os grandes meios atacam Trump é porque ele denuncia a globalização económica, convencido de que ela está acabando com a classe média. Segundo ele, a economia globalizada está falhando cada vez em beneficiar as pessoas, e lembra que, nos últimos quinze anos, nos Estados Unidos, mais de 60 mil fábricas tiveram que fechar, e quase cinco milhões de empregos industriais bem pagos desapareceram.

3) Trump é um fervente defensor do protecionismo. Sua proposta visa aumentar as taxas sobre todos os produtos importados. “Vamos recuperar o controlo do país, faremos com que os Estados Unidos voltem a ser um grande país”, costuma afirmar, retomando seu slogan de campanha.

Partidário do Brexit, Donald Trump revelou que se for presidente tentará retirar os Estados Unidos do Tratado de Livre Comércio de América do Norte (NAFTA, por sua sigla em inglês). Também criticou as propostas de Acordo Transpacífico (TPP, por sua sigla em inglês), assegurando que também retirará o país do projeto assim que chegar à Casa Branca: “o TPP seria um golpe mortal para a indústria de manufaturas dos Estados Unidos”.

Em regiões como a do “cinturão do óxido”, no nordeste do país, onde o fecho das fábricas de manufacturas tem provocado altos níveis de desemprego e pobreza, esta promessa de Trump está produzindo grande efeito.

4) Também está causando grande a sua resistência, ao menos no discurso, aos cortes neoliberais em matéria de seguridade social. Muitos eleitores republicanos, vítimas da crise económica de 2008, ou maiores de 65 anos, necessitam do benefício da seguridade social e do seguro de saúde desenvolvido pelo presidente Barack Obama, e que outros líderes republicanos desejam suprimir.

Trump prometeu não tocar nestes avanços sociais, baixar o preço dos medicamentos, ajudar a resolver os problemas dos “sem tecto”, reformar dinâmica tributária, especialmente no que diz respeito à fiscalização dos pequenos contribuintes, e acabar com o imposto federal que afeta a 73 milhões de lares modestos.

5) Contra a arrogância de Wall Street, Trump propõe aumentar significativamente os impostos dos corretores das bolsas, que ganham fortunas, e apoia o restabelecimento da Ley Glass-Steagall, a mesma que foi aprovada em 1933, em plena Grande Depressão, e que separou a banca tradicional da banca de investimentos, com o objetivo de evitar que a primeira pudesse fazer investimento de alto risco. Obviamente, todo o setor financeiro se opõe absolutamente ao restabelecimento desta medida.

6) Em termos de política internacional, Trump quer estabelecer uma aliança estratégica com a Rússia, para combater com eficácia a Organização Estado Islâmico, mesmo que, para isso, Washington tenha que reconhecer a anexação da Crimeia por Moscou.

7) Também declarou, na direção contrária a de muitos líderes do seu partido, estar de acordo com o restabelecimento das relações entre Estados Unidos e Cuba.

Todas estas propostas não invalidam as inaceitáveis e odiosas declarações do candidato republicano, difundidas com pompa e circunstância pelos grandes meios dominantes. Mas sim explicam melhor o porquê do seu sucesso entre amplos sectores do eleitorado norte-americano.

Tradução: Victor Farinelli

Fonte: Le Monde Diplomatique

 

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