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Polémica em torno do 'burkini' esconde racismo anti árabe

09-09-2016 - Leneide Duarte-Plon

Para observadores mais finos, o debate é sobre o lugar que o Islã ocupa ou deve ocupar na sociedade francesa.

Quem já leu textos de historiadores da Segunda Guerra Mundial conhece essa advertência em cartazes à entrada dos parques e jardins das cidades francesas depois da invasão nazista em 1940. Além disso, o governo-marionete francês, instalado em Vichy sob a presidência do Marechal Pétain, logo decretou leis de exceção que excluíam os judeus do serviço público.

Depois veio a abominável deportação de judeus franceses para os campos de extermínio do III Reich.

O país que, durante a Revolução de 1789, redigiu a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, que ofereceu ao mundo o pensamento de Descartes, de Voltaire e de Sartre tem para a escritora franco-tunisiana Fawzia Zouari a mais bela divisa da História : « Liberté, Égalité, Fraternité ». Degundo ela, esse lema « servirá de alerta quando a besta fera ameaçar renascer ».

Na França de 2016, a segregação ameaçou recomeçar nas praias.

Neste verão em que Paris celebrou com uma bela exposição os 70 anos da criação do biquíni, 31 prefeitos de cidades litorâneas publicaram decretos proibindo o acesso às praias de mulheres vestidas pudicamente com o que uma estilista de Londres batizou como « burkini », num golpe de publicidade que une a famigerada « burka », que cobre toda a mulher, ao nome do traje septuagenário adotado no mundo inteiro.

Com a proibição, o burkini - túnica e calça legging, além de um veu – se tornou o assunto político do fim do verão francês. As feministas se dividiram em dois campos opostos, com argumentos de peso para justificar ou combater a proibição.

Imediatamente, a Liga dos Direitos Humanos recorreu ao Conselho de Estado arguindo a ilegalidade dos decretos de cidades como Nice, Frejus e Cannes. O sul da França tem um eleitorado predominantemente de direita e de ultra-direita e Nice ainda vive o trauma do ataque do caminhão na Promenade des Anglais que matou 85 pessoas. O prefeito de Frejus é do Front National, de Marine Le Pen, que não esconde a islamofobia.

Conselho de Estado decreta : « É ilegal proibir »

O Conselho de Estado – jurisdição administrativa suprema para julgar atos e decretos dos prefeitos, entre outros – deu parecer desfavorável à proibição do burkini.

Os decretos anti-burkini « atentam grave e ilegitimamente contra as liberdades fundamentais que são a liberdade de ir e vir, a liberdade de consciência e a liberdade pessoal », arbitrou o Conselho de Estado.

O país dos direitos humanos não se rendeu ao ridículo de alguns de seus políticos que se entregam há algum tempo a um racismo anti-Islã, fazendo um amálgama falacioso entre a religião de Maomé e o terrorismo que vem sacudindo a França nos últimos dois anos.

« Acho que eles deveriam estar mais preocupados com os 40% de franceses e uma porcentagem ainda maior de mulheres e crianças dos bairros populares que não saem de férias no verão, seja para praias seja para outros locais », escreveu Vincent Remy, na revista « Télerama ».

A proibição ao burkini significaria na prática uma proibição às muçulmanas de ir à praia, uma vez que para elas, como para as judias ortodoxas, é impensável expor o corpo em maiôs convencionais.

O « New York Times » aproveitou para cutucar os franceses : “Mandar uma mulher muçulmana retirar sua roupa na praia é uma humilhação pública mais perto da polícia dos costumes dos regimes teocráticos como o Irã e a Arábia Saudita do que de um país que vê seus valores como o paradigma das liberdades ocidentais ».

Na origem, guerra contra Daech

O preocupante nessa polêmica estéril é que uma pesquisa de opinião revelou que 64% dos franceses são favoráveis à interdição do burkini. Mesmo se a força do Estado de direito tenha vencido a estigmatização de uma população, fica a lição da polêmica : ela esconde um racismo anti-árabe, prestes a se revelar em parte da população de franceses brancos.

Para observadores mais finos, o debate é sobre o lugar que o Islã ocupa ou deve ocupar na sociedade francesa.

« Eles querem que sejamos invisíveis », resumiu uma francesa de origem muçulmana que usa o véu.

Mesmo depois do parecer do Conselho de Estado, muitos prefeitos continuam dizendo que vão manter a proibição, expondo-se a sanções administrativas.

O Papa Francisco racionaliza o debate

Depois da degolação do padre Jacques Hamel numa pequena cidade francesa em julho, o próprio papa declarou:

“Não gosto de falar de violência islâmica. Todos os dias no jornal vejo violências aqui na Itália, um que mata a noiva, outro o sócio. E são católicos batizados. Se eu falar de violência islâmica tenho que falar de violência católica. Não, todos os muçulmanos não são violentos, todos os católicos não são violentos ».

Segundo o presidente François Hollande, a França está em guerra. Contra um inimigo difuso e genericamente qualificado de « terrorismo », palavra de tal forma banalizada que pode servir para designar qualquer inimigo que se quer demonizar. O Estado Islâmico ou Daech, como se usa em francês, está na origem dos ataques terroristas que o país sofreu nos últimos dois anos e é ele que o exército francês combate tanto no Iraque e na Síria quanto no Líbano.

Os inimigos, a quem a França nega a condição de combatentes por não reconhecer o auto-proclamado Estado Islâmico, não vêm de fora, na maioria das vezes. Eles são franceses e representam um Estado considerado terrorista, que tem seu governo baseado em parte da Síria e do Iraque mas goza da especificidade de encarnar um ideal de califado profundamente impregnado na alma de alguns muçulmanos extremistas no mundo inteiro. Eles são messiânicos e dizem preparar a vinda do Mahdi, o messias do final dos tempos.

Esses extremistas que pregam o « djihad » (guerra santa) contra os que consideram infiéis (judeus, cristãos mas também os muçulmanos moderados) vivem e atuam em qualquer parte do mundo já que o que caracteriza o califado é sua soberania extraterritorial.

Os ataques terroristas espetaculares que fizeram centenas de vítimas explicam, mas não justificam, a demonização de uma parte da sociedade francesa em relação à comunidade muçulmana. Segundo dados oficiais a população de origem árabe-muçulmana na França é de cerca de 3,5 milhões de pessoas. A grande maioria vive segundo as leis da République e se considera cidadãos franceses.

Apesar do parecer do Conselho de Estado, Sarkozy e Marine Le Pen, candidatos à eleição presidencial de 2017 (ele ainda deve passar pela primária de seu partido) dizem que o debate não terminou. Prometem propor uma lei que altere a Constituição para proibir todos os sinais religiosos externos no espaço público.

O paradoxo é que não se pode legislar para uma única religião. Os padres e freiras católicos vestidos com roupas tradicionais e os judeus que usam quipá ou outros elementos do vestuário vão ser proibidos de sair às ruas por « perturbarem a ordem pública » ?

Esta pergunta vai ter que ser respondida pelo primeiro ministro Manuel Valls, que defendeu os decretos em entrevista, antes do parecer do Conselho de Estado.

Suas ministras da Saúde e da Educação, Marisol Touraine e Najat Valaud-Belkacem, disseram discordar da proibição. A primeira em excelente texto em sua página na internet e a segunda, através de uma entrevista.

 

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