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Erdogan reinicia a política exterior turca

05-08-2016 - Ángel Ferrero

O maior beneficiário da tentativa de golpe na Turquia talvez seja aquele que ninguém esperava que pudesse sair ganhando neste drama: a Rússia.

“Um presente de Deus”. Foi assim que Recep Tayipp Erdogan definiu a tentativa de golpe de Estado do dia 15 de julho. A fracassada ofensiva militar proporcionou ao presidente turco a chance de agir com motivos para cimentar seu poder, e assim ele começou sua campanha, com a detenção, suspensão e expulsão de dezenas de milhares de funcionários públicos – passando pelo Judiciário, pelo sistema de ensino, e também pelas Forças Armadas, sem esquecer da polícia e dos meios de comunicação públicos – e a proibição de numerosas ONGs que atuam no país.

Porém, como o ditado diz que Deus escreve sobre linhas tortas, que talvez sejam certas, mas sim são misteriosas, e no caso do golpe turco, pode que, no final, o maior beneficiado seja aquele que ninguém esperava que pudesse sair ganhando neste drama: a Rússia.

A queda do avião e as primeiras aproximações

As relações entre Turquia e Rússia se deterioraram depois que um caça turco derrubou o avião militar russo SU-24, em 24 de novembro de 2015, quando esse retornava à sua base após bombardear objetivos na Síria. Segundo Ancara, o SU-24 violou o espaço aéreo turco e foi abatido depois de receber vários alertas durante cinco minutos. Para Moscou, o avião foi atacado em espaço aéreo sírio.

Esse incidente – o primeiro em que um Estado-membro da OTAN derrubava um avião militar russo desde a guerra da Coreia – terminou com a morte de um dos pilotos e um soldado da equipe acionada para o resgate da aeronave. No caso do piloto, a morte se deu por disparos recebidos enquanto ele caia de paraquedas – o que supõe uma violação da Convenção de Genebra –, que foram feitos por membros das Brigadas Turkmenas da Síria, uma milícia conhecida por suas alianças com organizações islamistas como a Frente al-Nusra e o Ahrar al-Sham, e cujo comandante responsável por essa ação, Alparslan Çelik, pertence à organização ultranacionalista turca Lobos Cinzentos.

A reação dos russos não tardos, e foi contundente. Dois dias depois, o primeiro-ministro russo, Dmitri Medvedev, anunciava a aprovação de sanções contra a Turquia, e na mesma semana, o presidente Vladimir Putin assinava um decreto que proibia determinadas importações agrícolas do país e a extensão dos contratos de trabalho com os cidadãos turcos residentes na Rússia, que valeria a partir de 1 de janeiro deste ano, além de também proibir os voos charter da Rússia para a Turquia. As autoridades russas também emitiram recomendações aos operadores de turismo para que deixassem de vender pacotes de viagens à Turquia, uma medida destinada a golpear o importante setor turístico – 4,4 milhões de russos, dos quais 3,3 milhões de turistas, visitaram o país em 2014, segundo a agência Reuters. O diário Hürriyet informou no começo deste ano, que o instituto de investigação econômica turco TEPAV chegou a calcular as perdas diretas para a economia em 2,5 bilhões de dólares – as perdas indiretas, através da diminuição do emprego, duplicavam essa cifra – e um 0,15% do PIB.

Em dezembro passado, as Forças Aeroespaciais russas bombardearam cerca de vinte caminhões cisterna carregados de petróleo, na região síria de Idlib, que partiam de zonas controladas pelo Estado Islâmico e se dirigiam à Turquia. Os meios de comunicação russos denunciaram pouco depois que familiares de Erdogan lucravam com esse tráfico ilegal de petróleo. Em 10 de fevereiro deste ano, os curdos sírios inauguraram uma representação em Moscou, a segunda no exterior – além da do Iraque –, em outro gesto que irritou as autoridades turcas.

Erdogan, um político pouco dado às concessões ou reconhecer seus erros, finalmente cedeu à pressão. O presidente turco construiu sua reputação sobre dois pilares: a estabilidade política e o crescimento econômico – Goldman Sachs chegou a incluir a Turquia em sua lista de economias mais promissoras para investimentos no Século XXI –, e de repente se viu em meio a um cenário de instabilidade política e de desgaste da imagem do país no exterior, ameaçando comprometer inclusive a uma parte da sua própria base social. Erdogan enviou uma carta de desculpas a Putin que o Kremlin tornou pública no final de junho: “Nós nunca tivemos desejo nem intenção de derrubar um avião que pertence à Federação Russa (…) Quero reiterar minhas profundas condolências à família do falecido piloto russo, e por isso peço perdão. Com todo o meu coração, compartilho sua dor. Percebemos a família do piloto russo como uma família turca. Com o fim de aliviar o sofrimento e a gravidade dos danos causados, estamos prontos para qualquer iniciativa”.

A Turquia dava, assim, o primeiro passo para apaziguar e restabelecer suas relações com a Rússia, e isso antes de se produzir o golpe de Estado.

A reação russa ao golpe de Estado

Apesar do mal estado das relações russo-turcas, a reação de Moscou ao golpe de Estado foi de preocupação. O representante do Kremlin, Dmitri Peskov, e o Ministério de Relações Exteriores se declararam “muito preocupados” pelos acontecimentos, e afirmaram que a Rússia estava disposta a trabalhar “de forma construtiva com os dirigentes eleitos da Turquia”.

Além de ser um importante sócio comercial, a Turquia exerce uma considerável influência no Cáucaso. Um exemplo claro é a relação com o Azerbaijão, com o qual os turcos mantêm uma estreita cooperação em todos os âmbitos, e cujo ex-presidente, Heydar Aliyev, chegou a dizer que Turquia e Azerbaijão eram “uma nação com dois Estados”. No Cáucaso norte, a Turquia acolhe numerosos refugiados chechenos. Em 2013, sendo primeiro-ministro, Erdogan chegou inclusive a mostrar seu interesse em se unir à Organização de Cooperação de Shanghai, amplamente considerada como uma iniciativa em matéria de segurança para manter a influência da OTAN fora do espaço euro-asiático. Segundo a politóloga Nazanín Armanian, devido a que Erdogan tinha “sua própria agenda em termos de política exterior, e que buscava sair da órbita dos Estados Unidos”, Washington lhe castigou duramente, “empurrando-o ao inferno da desgastante guerra na Síria”.

Nos dias posteriores ao golpe, a Turquia acusou as “potências estrangeiras” de estar por trás da intentona. “Pode haver outros países implicados também. A organização terrorista comandada por Fethullah Gülen teme também outra mente superior, se podemos considerá-la assim, e chegará o tempo em que se decifrarão as conexões (…) Não creio que seja necessário esperar muito tempo”, declarou Erdogan. De suas palavras, podemos deduzir que o presidente turco continua pensando em no líder opositor Gülen, que reside na Pensilvânia e mantém boas relações com os Estados Unidos, como líder do golpe. O presidente turco sugeriu, em declarações ao canal Al Jazeera, que os partidários de Gülen também estavam por trás ataque ao caça SU-24. “Este `governo paralelo´ destruiu nossas relações com a Rússia. No incidente com o avião participou um de seus partidários, estou 100% seguro disso, como também estou seguro de que outros seguidores participaram na tentativa de golpe”, declarou o prefeito de Ancara, Melih Gökcek. O vice-presidente do governo turco, Mehmet Simsek, agregou que a queda do avião ocorreu após uma modificação nas regras de combate. “As regras de combate foram revisadas, porque alguns aviões turcos haviam sido derrubados pelos da Síria, e segundo o novo regulamento, se delegou aos pilotos a decisão de abater ou não uma aeronave”, declarou Simsek à imprensa.

Na última quinta-feira (28/7), o ex-primeiro-ministro turco Ahmet Davutoglu reconheceu que foi ele quem emitiu a ordem que propiciou o ataque ao avião russo. Entretanto, o ex-dirigente destacou que sua disposição não se referia a uma aeronave em particular, e sim que representava uma instrução comum para a defesa do espaço aéreo da Turquia, segundo informou ao jornal Hürriyet.

Dois dias antes, o Kremlin comunicava que os dois presidentes se reunirão em 9 de agosto, em São Petersburgo. O encontro vem precedido por vários anúncios. Assim, no dia 22 de julho, a Comissão Intergovernamental para a Cooperação Econômica e Comercial retomava suas atividades, e uma delegação oficial da Turquia visitou Moscou esta semana, para tratar várias questões, desde turismo e energia até segurança e isenção de vistos para cidadãos turcos. Moscou também manifestou sua intenção de reativar o projeto Turkish Stream, que levaria gás russo diretamente à Turquia, cruzando o Mar Negro. Eventualmente, este gasoduto poderia substituir o já suspenso South Stream, como um dos principais corredores do gás russo para a Europa Central. A Rússia abandonou o corredor sul alegando obstáculos burocráticos na Bulgária e a provável oposição da União Europeia – segundo Bruxelas, o projeto violava a política energética comunitária, que estipula a separação de companhias geradoras e distribuidoras de energia. Para isso, era preciso uma conexão com o projeto Tesla Stream, que por sua vez conectaria o Turkish Stream com a Áustria, através dos Bálcãs.

Reset e comeback?

Significa o retorno da Rússia ao Oriente Próximo e ao Oriente Médio? Segundo Mike Whitney, a política exterior da Casa Branca foi a que empurrou o presidente turco para o lado dos russos, o que poderia acabar supondo o levantamento de uma peça chave “entre a Europa e a Ásia, que Washington necessita para manter sua hegemonia global no novo século”. “O plano de Washington, de deslocar seus esforços na Ásia visando rodear e fragmentar a Rússia, controlar o crescimento da China e manter seu férreo controle global”, poderia ser seriamente afetado, comenta Whitney, em artigo para Counterpunch.

Mike Whitney sustenta que a atuação turca na Síria acabou sendo contraproducente para Ancara, já que reforçou os curdos – que contam, em parte, com o apoio dos Estados Unidos – e fez com que o conflito se estenda finalmente ao próprio território turco, em forma de atentados terroristas. Os receios da Turquia com relação aos Estados Unidos foi crescendo nos últimos meses: após a queda do SU-24, Washington virou as costas ao governo de Erdogan, que enfrentou sozinho as represálias de Moscou. Os Estados Unidos apoiam os curdos e fazem da defesa de Israel um fundamento de sua política para a região, colocando todos os demais temas em segundo plano. Assim, Ancara começa a contemplar com mais interesse uma aproximação à diplomacia russa, vista com respeito pelas grandes potências da região – desde Israel, passando pela Síria e pelo Irã –, que apela com frequência a temas como a soberania e que mantém boas relações com as autocracias da Ásia Central, um sistema de governo ao que Erdogan poderia atualmente estar aspirando, segundo alguns analistas.

Por tudo isso, Erdogan tem respondido com a busca de “alianças com antigos inimigos (Rússia, Síria e Israel), para resetar a política exterior turca”. No caso da Síria, o diário britânico The Guardian fez eco de declarações do primeiro-ministro turco, Binali Yildrim, reclamando de uma normalização das relações com Damasco. Com a segunda cidade do país (Alepo), praticamente cercada, um eventual fechamento da fronteira turca poderia supor outro ponto de inflexão na ofensiva do Exército Árabe Sírio após a retomada de Palmira.

Se a aproximação entre Turquia e Rússia seguir avançando na mesma medida em que o governo de Ancara se distancia dos Estados Unidos, se abriria também uma incógnita sobre o futuro da base de Incirlik, no sul do país, desde onde a coalizão ocidental dirige os bombardeios na Síria, e que aloja dezenas de armas nucleares de importância estratégica para Washington. Vale lembrar também que a Turquia possui o segundo maior exército da OTAN, atrás apenas dos Estados Unidos, com mais de 639 mil efetivos em suas fileiras.

Outro elemento a se considerar é a frustração comum dos dois país com a União Europeia. Segundo o analista Fiódor Liukánov, em artigo para o The Moscow Times, Rússia e Turquia se entusiasmaram com o projeto de uma “Europa ampliada”, e tanto Putin quanto Erdogan “fizeram grandes esforços, nos primeiros anos de seus mandatos, para assegurar que seus países estavam incluídos nesse projeto”. Porem, Liukánov também diz que, “o projeto de integração foi golpeado por uma dura crise estrutural”, devido a que ambos os países começaram olhar para o leste com mais interesse. “A ideia de uma casa comum europeia perdeu força – continua – e a política europeia está retrocedendo à Europa multipolar do Século XIX”. Liukánov descreve esta como a época “na que a competição entre os países era o estado de cosas habitual, os pequenos países eram uma fonte de discórdia e uma dor de cabeça para todos, e os `bárbaros das portas´, Rússia e Turquia, estavam divididos por sentimentos de amor e ódio com relação à Europa”. Evidentemente, agrega ele, “a história nunca se repete de maneira exata, e a situação atual difere em ao menos um ponto: a Europa deixou de ser o centro do mundo. Antes, se a Europa espirrava, o mundo inteiro se resfriava. Agora, porém, três quartos da humanidade simplesmente não têm nenhum interesse no que aflige a essas pessoas estranhas com suas desmedidas ambições e uma minguante capacidade para colocá-las em obra apropriadamente”.

Será a reunião de Erdogan com Putin o primeiro passo a uma mudança de orientação da política exterior turca e, com isso, uma reacomodação do delicado equilíbrio de potências e influências no Oriente Próximo e Médio? Ou se trata simplesmente de uma movida do presidente turco para se consolidar no poder e manter a condição privilegiada de país pivô geopolítico da relação entre a Europa e a Ásia? A resposta, em qualquer caso, começará a ser desvendada nas próximas semanas, ou quiçá em coisa de dias. Certo ou não, Deus continuará escrevendo pelas misteriosas linhas tortas.

Tradução: Victor Farinelli

Fonte: Publico.es

 

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