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Francisco e a teologia da libertação

05-02-2016 - Bernardo Barranco

Francisco não simpatiza com o marxismo, mas isso não quer dizer que se isole dessa grande corrente eclesiástica que é a Teologia da Libertação.

O progressismo católico vê com entusiasmo as posturas e os gestos que o papa argentino Jorge Bergoglio vem demonstrando em seu pontificado. Em sua posse, ao dizer a inesquecível frase de “quero uma Igreja pobre e para os pobres”, ele contribuiu para que os católicos progressistas se identificassem imediatamente com o novo líder da instituição. O nome Francisco, a simplicidade, o distanciamento dos luxos principescos, os duros questionamentos à economia internacional, as mensagens radicais aos movimentos populares, a publicação da encíclica Laudato Si, foram sinais claros de uma tentativa de recuperar o espírito do Concilio Vaticano II.

Em contrapartida, os sectores conservadores tentam se mostram resistentes às reformas e medidas de Francisco. De forma sorrateira, mas implacável, os representantes da cúria o chamam de “papa argentino”, para marcar uma distância cultural eurocêntrica, o reprovam por ser populista e por tentar governar a Igreja através de homilias próprias de um pároco do povo. A temível direita norte-americana, especialmente o lobista Michael Novak, vê com preocupação as suas constantes críticas à economia de mercado. Tentaram inclusive sabotar a encíclica ecológica do Papa.

Mas pode-se dizer que Francisco é próximo da teologia da libertação? Há alguns dias, o jornal El Sol do México publicou um artigo assinado pelo correspondente Jorge Sandoval, intitulado “Francisco e a teologia da libertação”. O texto condena Bergoglio por ter posturas contraditórias que dão margem a interpretações opostas. O autor diz que “as denúncias contra um `capitalismo injusto e explorador´, contra uma `sociedade dominada por um mercado que mata´, ou contra `o deus dinheiro´, entre outros males citados em outras declarações, de forma contínua e quase obsessiva, fazem pensar que o pontífice argentino é um declarado simpatizante dessa teologia”. A conclusão é de que Francisco está de acordo com a condenação e reprovação à corrente teológica nascida na América Latina. A coluna defende seus argumentos a partir de uma caricatura do que eles entendem ser a teologia latino-americana da libertação.

Essa direita concebe a teologia como um jogo de ideias ou um exercício intelectual e especulativo. A crítica mais importante é a respeito do uso do marxismo como ferramenta de análise, o que levaria irremediavelmente à subversão e à violência. Embora muitos teólogos utilizem esses mesmos conceitos, é absolutamente equivocado equiparar a teologia latino-americana com o marxismo. Existem diversas correntes, com diferentes hermenêuticas inclusive. A teologia apresentada assim fica reduzida a uma ideologia política com requintes religiosos. Também é inadequado reduzir a teologia da libertação à luta de classes, exaltar a classe operária como seu actor histórico, o que tornaria impossível uma teologia voltada ao mundo indígena, à negritude, ou uma teologia feminista. Difícil imaginar a expansão dessa caricatura no contexto do mundo actual, que necessita uma teologia da terra, ou ecologista. Todas são herdeiras da teologia da libertação. Quando Ratzinger era o cardeal responsável pela doutrina da fé, analisou a teologia latino-americana e a descreveu como um “fenómeno extraordinariamente complexo”. Tinha toda a razão, porque a teologia da libertação é mais que um discurso, é um caminho. Mais que uma visão única sobre Deus, é um vasto e heterogéneo conjunto de movimentos sociais e religiosos, que se expandiram desde os Anos 60 do século passado.

Por isso, para Leonardo Boff, um dos defensores mais entusiastas de Francisco, “é natural que muitos se perguntem se o papa é um seguidor da teologia da libertação. Essa pergunta é irrelevante. O importante não é ser ou não da teologia da libertação, mas sim ser a favor da libertação dos oprimidos, dos pobres e dos que sofrem injustiças, e não há dúvidas de que ele segue essa linha”. O teólogo peruano Gustavo Gutiérrez, disse em Roma, diante do acosso jornalístico, que “as pessoas dizem hoje que estamos na época pós-socialista, pós-capitalista, pós-industrial. Gostam de dizer que estamos em várias épocas pós, mas nunca escutamos elas falarem numa época pós-pobreza”. E concluiu sua ideia dizendo que: “a noção central da teologia da libertação é a opção preferencial pelos pobres. E esse ponto esteve firme nas reuniões das conferências episcopais latino-americanas de Medellín (1968), Puebla (1979), Santo Domingo (1983) e Aparecida (2007). Ainda que a opção preferencial pelos pobres seja um conceito muito mais claro agora, graças ao testemunho do papa Francisco, que fala da Igreja pobre e para os pobres”.

Efectivamente, a teologia da libertação floresceu depois do Concilio Vaticano II, se convertendo num dos fenómenos sociais e religiosos mais importantes da região, que conviveu e confrontou as ditaduras militares entre os Anos 60 e 80. De certa forma, posicionou as igrejas católicas latino-americanas na defesa dos direitos humanos, dos pobres e da confrontação contra as injustiças sociais. Nesse ciclo, o compromisso social dos cristãos aumenta e suas organizações, como as comunidades de base, e também algumas figuras religiosas importantes em países latinos, conseguem adquirir peso social e relevância. Não há somente uma teologia da libertação. Juan Carlos Escanonne, um dos que mais influi no pensamento de Bergoglio, junto com Lucio Gera, distingue ao menos quatro grandes correntes: a) a teologia da libertação a partir da prática pastoral, b) a teologia da libertação de prática revolucionária (provavelmente a mais “contaminada” de marxismo), c) a teologia da libertação a partir do envolvimento cultural, a também chamada teologia da cultura, e d) a teologia do povo, elaborada pelos sacerdotes do terceiro mundo. Não há espaço para analisar cada uma, mas fica claro que a atmosfera geracional que Bergoglio respira é este ambiente pastoral de compromisso para com os pobres e as injustiças sociais.

Na América Latina, é de conhecimento público a forma como surgiu e se propagou o processo de repressão interna na Igreja, marginalizando teólogos e agentes pastorais, nomeando bispos conservadores e submissos ao centralismo romano. A dupla Wojtyla-Ratzinger minou os ensaios pastorais e as inovações latino-americanas. É evidente que Francisco não simpatiza com o marxismo, mas isso não quer dizer que se isole dessa grande corrente eclesiástica latino-americana, cujo epicentro é a opção pelos pobres e marginalizados, sejam crianças, anciãos, mulheres, indígenas, descapacitados, jovens ou imigrantes.

Fonte: La Jornada, do México

Tradução: Victor Farinelli

 

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