Líbia: o pontão da morte
01-05-2015 - José Luís Fiori
Libertada pelos civilizadores da selvajaria de Kadafi, a Líbia ilustra em ponto pequeno o oceano de hipocrisia e indiferença por trás da fuga sem fim.
Corpos rígidos de negros jovens, corpos velhos, corpos de crianças, de mulheres grávidas. Cinquenta, setenta, cem, cento e cinquenta, duzentos, duzentos e cinquenta, quatrocentos, setecentos... podem passar de 900 desta vez. Ou mais.
Ninguém sabe ao certo. A contabilidade da morte é opaca quando o cemitério é o mar e o esquife é a noite.
O Mediterrâneo se transformou no grande sepulcro da vergonha em nosso tempo.
Barcos clandestinos cortam suas águas atulhadas de desespero e desolação e naufragam sob o peso da devastação colonial que faz da África hoje o único lugar no mundo onde a fome só cresce, as guerras não tem nome e a barbárie étnica apaga com sangue as fronteiras traçadas pela geometria do europeu branco e predador.
Esse horizonte funesto ganhou um porto à altura do seu desalento: a Líbia.
‘Libertada’ pelo Ocidente, em 2011, é de lá que partem dois de cada três futuros náufragos do Mediterrâneo, a buscar uma redenção renegada pela xenofobia dominante na terra de seus antigos algozes.
A chegada irregular de imigrantes provenientes do pontão líbio triplicou em 2014. Mais de 170.000 pessoas. Da Líbia provinham também as duas últimas embarcações naufragadas a assoalhar o fundo do canal da Sicília nos últimos dias.
O pesqueiro de 20 a 30 metros de comprimento que submergiu a 70 milhas das costas da Líbia, a 120 milhas da Ilha de Lampedusa no último dia 18, trazia mais de 900 integrantes dessa diáspora fúnebre.
Embarcaram para o seu fim em um porto vizinho a Trípoli, a capital líbia hoje fraccionada entre milícias adversárias.
Apenas 28 sobreviveram para narrar a devastação.
Foi a maior tragédia da história da migração no Mediterrâneo. Está longe de ser a última.
Quatro dias antes, outras 400 pessoas saíram da Líbia, rumo à Sicília, para o afogamento no meio da travessia.
Só este ano, 1500 imigrantes encontraram a morte quando buscavam um espaço para a sua vida nas costas europeias.
O cais líbio sintetiza o caos humano na África e no Oriente Médio.
A correnteza imigrante que o personifica, amarrotada em pedaços cascos clandestinos que quase nunca chegam ao seu destino, condensa a metáfora de um pedaço da humanidade que não encontra o seu lugar no jogo de xadrez montado pelas grandes potências ocidentais.
Libertada pelos civilizadores da selvajaria de Kadafi, a Líbia ilustra em ponto pequeno o oceano de hipocrisia e indiferença por trás da fuga sem fim.
A construção desse estirão por aqueles cujos antepassados libertaram também a África de sua autonomia tribal, foi tema de uma análise perfurante do professor e colunista de Carta Maior, Jose Luís Fiori, em 2011, quando a obra estava em fase de festejos pela media não menos cínica.
JOSÉ LUÍS FIORI
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