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Reconstruir moralmente a esquerda?

10-10-2010 - Yvon Quiniou

Os argumentos do autor, numa perspectiva materialista, em como o renascimento da esquerda se deverá basear na moral, separando-a da ética.   A.C.

A esquerda certamente precisa de reforçar o seu projecto de transformação social num propósito claramente moral, numa linha que não hesite em fazer vingar de forma agressiva os seus valores retrógrados, contra um sistema capitalista que se vai revelando, nos seus evidentes excessos, na sua imoralidade óbvia que se traduzem nos danos humanos e ecológicos que acontecem por todo o lado e a todos os níveis.

Esta exigência aplica-se ao PS, que há muito tempo cedeu à ideologia liberal, dando-se ao espectáculo de ambições individuais, aplicando-se isto também ao PCF (com quem partilho a luta), herdando de alguma tradição marxista, uma negação teórica da dimensão moral do seu projecto político. Mas de que moral se trata, como pensá-la de uma maneira materialista, impedindo-a de invadir arbitrariamente a vida individual e de como ela nos obriga a condenar o capitalismo, não apenas nos seus excessos, mas nela mesma? A moral existe ao contrário do que o mundo pós-moderno, seguindo Nietzsche, nos quer fazer crer, sendo Kant quem nos deu a fórmula definitiva, segundo o critério do Universal: não é moral o que pode universalizado, pois condenamos um privilégio, que não pode, por definição, ser universal. Resta a certeza da sua existência quando Deus não está lá para a garantir o livre arbítrio dos metafísicos ou para apoiá-los e fazer-nos compreender que estamos pressionados pelas suas premissas. Ou é Darwin, a este nível, que se impõe, e nos mostra que ela é uma competência natural do homem, resultado da teoria da evolução das espécies desenvolvida no seu pensamento e que o levou a apropriar-se do seu conteúdo universalista. Mas isso não é suficiente: é preciso indicar com rigor o seu campo de aplicação distinguindo-a claramente da ética com pensadores como Ricoeur, Conche ou Habermas.

Isto aplica-se apenas à vida individual, caracteriza-se por aquilo que Foucault chamou de "preocupação consigo mesmo" e os seus valores são subjectivos e facultativos.   A política não tem de intervir, sob pena de cair no totalitarismo como fizeram e ainda fazem os poderes religiosos, e como também fizeram, infelizmente, os regimes de tipo soviético, esquecendo a ambição de se tornar o indivíduo autónomo, que suporta o pensamento de Marx.  Por outro lado, deve preocupar-se em tornar exequível a autonomia, colocando ao dispor de todos (moralmente falando) os meios éticos disponíveis na opção de escolha para a sua vida. Por outro lado, a moral aplica-se às nossas relações com os outros, é "preocupação com os outros", mas de todos os outros e em todos os domínios. Ao contrário do que sugere o regresso de uma filosofia moral mais cautelosa, ela não se restringe às relações intersubjectivas, princípios que legislam ou que deviam legislar, através do direito, sobre as relações da sociedade e é nesse ponto específico que deve   ser incorporada na política, deve-se evitar que caia no cinismo, nos jogos de poder indiferentes ao sofrimento humano.

Tal tem vindo a ser feito desde a Declaração de 1789, que para além dos limites de classe (como o respeito pela propriedade privada), enuncia a incondicionalidade da igualdade dos direitos políticos para todos. E desde então, a história da esquerda sindical e política, ao longo dos séculos XIX e XX, tem sido a de uma luta para a obtenção de maiores direitos sociais formalizados na Declaração Universal de 1948, que são todos acervo moral consubstanciado na existência material, histórica e social dos seres humanos.   Contudo, é aqui, especialmente desde a queda do Muro de Berlim e a vitória que pensávamos definitiva do liberalismo contra esta que se apresentava indevidamente como o "marxismo", que a questão da exigência moral na política surge novamente como uma questão de fundo, de forma crucial e dramática: devemos ceder ao pessimismo e, como a maioria partidos social-democratas, proibir a moral que trata da economia e pondo em causa o capitalismo?  Esta tese, que foi já a de Hayek no século XX, foi actualizada por Comte-Sponville, num espírito que coincide com o espírito da época: a economia consiste em mecanismos objectivos que não foram procurados por ninguém, ela não tem que ser julgada moralmente: não sendo moral nem imoral, estaria para além da moralidade.

Ou esta concepção está errada no seu princípio: a economia é o lugar do   comportamento   de alguns homens face a outros homens - como na organização do trabalho e nos negócios - é a vida social e, portanto, o julgamento moral. Em contraste com a social-democracia europeia, devemos manter a ideia de Marx de que a economia "não é a tecnologia", ela envolve questões fundamentais da pessoa humana, dado o papel do trabalho na existência dos homens e que deve, portanto, ser apreciada do ponto de vista moral. Assim, a exploração económica que caracterizou o capitalismo desde o seu início, com os efeitos nefastos sobre a vida humana que permanecem ao longo dos tempos, deve ser condenada em nome da moral: não pode ser universalizada - para que haja um explorador deve estar lá alguém para ser explorado – e é, portanto,  intrinsecamente imoral, quaisquer que sejam as regras às quais podemos dar uma visão reformista.   Isto significa que uma crítica frontal ao capitalismo, visando a emancipação humana em todos os campos - manipulação política, opressão social, exploração económica, alienação individual - continua a ser necessária e para além de se reivindicar uma política de “preocupação e cuidado" como Martine Aubry quer no centro do projecto PS: a preocupação com os outros, independentemente do seu interesse, não pode substituir uma política de Estado que exija justiça e solidariedade, condenado a exploração em todas as suas formas e em todas as suas consequências, de modo a condenar a desigualdade da propriedade económica e a riqueza.

Persiste a questão ecológica: a sua consciencialização resulta de uma opção ética ou de uma obrigação moral? Tudo depende de como a entendemos. Se é uma simples preferência pela ordem natural contra a ordem artificial da cultura (estilo "ecologia profunda" vinda dos Estados Unidos), nada nos obriga a fazê-lo, o que faz cair por terra a perspectiva ética, sobre aquela, a esquerda não tem nada de específico a dizer.  Se por outro lado, a ameaça é agora imposta sobre a reprodução da vida devido ao crescimento descontrolado da produção técnica e económica relacionadas com a conquista cega do lucro, há um imperativo moral absoluto: devemos fazer de tudo para preservar a vida na Terra e garantir a vida das gerações futuras   e o crescimento, que a maioria dos partidos políticos evocam como a solução dos problemas sociais, agravada a questão ecológica, sem ser capaz de resolver a questão social.

A resposta só poderá ser a divisão da riqueza existente e resultante do crescimento selectivo, o que implica a diminuição em algumas áreas e mesmo o abandono das produções prejudiciais aos humanos.   Gostaria de acrescentar que a preocupação ambiental vai além desses problemas “objectivos”. Na perspectiva da Ariès que havia sido indicado por F. Guattari, é a qualidade de vida que não é apenas física, mas mental e social: não saberemos dar uma definição a priori e impô-la a todos, mas isso deve ser feito para que todos possam decidir com conhecimento de causa e evitar a mediocridade generalizada das nossas vidas, imposta pelo capitalismo com a sua obsessão pela produção e pelo consumo. Vemos que a moral deve estar presente numa revisão futura da esquerda: ela não nos permitirá só por si resolver serenamente os problemas materiais da vida, pois estes também terão que ser considerados nos campos científicos e técnicos, todavia, indicar-nos-á o contexto normativo em que deverão ser encontrados.

 

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