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O momento da verdade para a democracia americana

06-11-2020 - Ruth Ben-Ghiat

Em determinados momentos da história, frequentemente depois de um progresso social substancial ter incomodado determinados segmentos da sociedade, aparece um indivíduo na cena política que afirma defender algo grande e novo. Treinado nas artes da auto-apresentação e da manipulação emocional, ele (é sempre um homem) captura os corações e as mentes de milhões com a sua fanfarronice machista. A seu tempo, forma-se um culto da personalidade em seu redor. E embora tenha ameaçado usar ou usado a violência na sua ascensão ao poder, goza do apoio dos fiéis, que o vêem como o salvador que trará ordem a um mundo desordenado.

Esta descrição do arquétipo do homem forte serve a muitos líderes actuais. E, do Brasil de Jair Bolsonaro e da Turquia de Recep Tayyip Erdoğan à Rússia de Vladimir Putin e aos Estados Unidos sob Donald Trump, incluem aqueles que governam alguns dos países com maior importância geopolítica do mundo.

Desde que Trump assumiu o poder no início de 2017, os EUA registaram uma erosão da democracia e testemunharam o desenrolar da liderança autoritária. A próxima eleição presidencial serve por isso de referendo à nova direcção antiliberal que a América tomou, sob um presidente que integrou o extremismo de direita e que desenvolveu uma política externa assente em alianças transaccionais com déspotas assassinos em todo o mundo.

Qualquer eleição pode reservar surpresas, como demonstrou a inesperada derrota de Hillary Clinton em 2016. Porém, um temor existencial rodeia as eleições de 2020, que trouxeram para primeiro plano possibilidades anteriormente impensáveis. Trump tem indicado repetidamente que poderá recusar-se a reconhecer a derrota, e muitos receiam que ele  fomentará  a violência política se o resultado não lhe agradar. A mera possibilidade destes cenários é sintomática de um clima político democrático degradado, e uma prova clara do quanto já avançou a reconstrução autoritária da cultura política Americana promovida por Trump.

Alguns especialistas, como o colunista conservador do New York Times Ross Douthat, ridicularizam a descrição de Trump enquanto homem forte. Vêem a antiga estrela de reality TV como demasiado fraca e apalhaçada para poder infligir danos sérios à sociedade americana, mesmo se for reeleito. Usando regimes onde o iliberalismo está profundamente enraizado como a Rússia de Putin enquanto comparação, estes cépticos concentram-se no que Trump não fez. Não fechou os meios de comunicação social da oposição nem estabeleceu um controlo total sobre o poder judicial e outras instituições; portanto, que razões existem para preocupação?

Mas essa comparação é enganadora. Todos os líderes autoritários modernos começaram numa sociedade com maiores liberdades, e desenvolveram gradualmente um processo de captura do estado. Especialmente no século XXI, a evolução, mais que a revolução (ou um golpe militar) tem sido a maneira como a liberdade é substituída pelo despotismo. Além disso, sem uma perspectiva sensata sobre o que Trump  fez, não conseguiremos compreender como chegámos a este ponto perigoso, nem o que poderemos esperar nas próximas semanas, meses ou anos, caso Trump seja reeleito.

A história da presidência dos EUA não serve de guia para interpretar as acções de Trump, a começar pelo seu relacionamento com as elites políticas Republicanas, que o apoiaram durante escândalos sexuais e de corrupção, a destituição e uma aterradora gestão da pandemia de COVID-19. Em vez disso, temos de olhar para modelos de “domínio personalista” autoritário, onde o poder está concentrado num único indivíduo, cujos interesses políticos e financeiros pessoais prevalecem normalmente sobre os interesses nacionais. Nesses regimes, a lealdade ao líder e aos seus aliados, e a participação na sua corrupção, ao invés da competência ou da experiência profissional, são as principais habilitações para o serviço público.

O êxito de Trump na domesticação da classe política é tão mais notável quando se considera que grande parte dos outros déspotas fundaram ou chegaram ao protagonismo no seio dos seus próprios partidos. Erdoğan, o primeiro-ministro húngaro Viktor Orbán e Benito Mussolini, por exemplo, tinham uma base de poder estabelecida muito antes de iniciarem a sua apropriação autocrática do poder. Trump não dispunha de um veículo político pronto para as suas ambições. Mas, em apenas alguns anos, conseguiu transformar o Partido Republicano em mais um mero negócio individual.

Os Republicanos, pelo seu lado, parecem encarar Trump como o meio de concretizar os seus próprios objectivos há muito frustrados (a defesa da hegemonia Cristã e branca, a desregulamentação de grandes estratos da economia e a redução dos impostos para os mais abastados). Mas, independentemente dos seus motivos, apoiaram-no com uma quantidade e um fervor que transformaram o Grand Old Party (NdT: Grand Old Party, ou GOP: denominação oficiosa do Partido Republicano).

Para o presente ciclo eleitoral, o partido não apresentou qualquer plataforma política, e em vez disso emitiu uma sinistra declaração de “apoio incondicional ao presidente Donald Trump e à sua Administração”, ilustrando assim o clima de medo e intimidação que reina hoje no seio do partido. Os republicanos ficaram reduzidos a combater as batalhas do homem forte, a difamar os seus inimigos e a protegê-lo contra todas as formas de responsabilização, incluindo a destituição no início do ano.

Este relacionamento autoritário entre líder e seguidor reflecte uma alteração fundamental na cultura política do GOP, que os Americanos terão de considerar independentemente do resultado das eleições. Um conjunto de estudos comparativos recentes demonstra que o Partido Republicano deixou de ser uma organização democrática tradicional, tanto na sua retórica como nas suas acções. Está hoje mais próximo dos partidos de Orbán e de Erdoğan que dos Conservadores britânicos ou dos Democratas-Cristãos alemães.

Com efeito, muito antes de Trump ter aparecido, o GOP, incentivado por um robusto universo de comunicação social de direita, já desdenhava os seus compromissos anteriores com as noções democráticas de tolerância mútua e de governação bipartidária. Mas Trump legitimou os elementos extremistas  que estavam anteriormente confinados às orlas do partido. Tal como a conselheira sénior da Casa Branca, Kellyanne Conway, tweetou logo após a tomada de posse de Trump, respondendo aos protestos sobre a sua ordem  de proibição de viajantes oriundos de países maioritariamente muçulmanos: “Habituem-se. O @POTUS é um homem de acção e de impacto. As promessas feitas são para serem cumpridas. Choque para o sistema. E ele está só a começar”.

Intencionalmente implementada sem aviso prévio, a proibição de viajar atirou o país para um estado de caos, dando aos funcionários públicos e federais uma apresentação visceral de uma administração que, com o pleno apoio do GOP, declarara guerra ao seu próprio povo. Durante os próximos quatro anos, Trump e os seus seguidores separariam crianças imigrantes das suas famílias,  enviariam  forças federais contra manifestantes pacíficos, libertariam uma enorme campanha de desinformação e desmantelariam ou poriam em causa inúmeras agências governamentais.

Só aceitando a realidade da viragem autoritária da política Americana podermos combater uma erosão democrática adicional. Independentemente do resultado das eleições, essa tarefa persiste.

RUTH BEN-GHIAT

Ruth Ben-Ghiat, Professora de história e estudos italianos na New York University, é uma especialista em regimes autoritários e seus líderes e autor do próximo Strongmen: Mussolini to the Present.

 

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