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Coreografias do silêncio

19-09-2014 - Jacques Gruman

A Europa Oriental foi varrida por ventos de mudança na segunda metade do século dezanove. Correntes revolucionárias ganhavam crescente apoio das massas pobres e essa influência ia além da política, derramando-se pela literatura. Os judeus, que constituíam importante fracção demográfica na região, não ficaram alheios aos acontecimentos. O tradicional modo de vida, fechado como autodefesa e engessado por medidas segregacionistas, viu-se questionado. Os jovens já não se satisfaziam com o modus vivendi cheirando a gueto e engrossavam as fileiras dos grupos que lutavam por um mundo mais justo e fraterno. O enfrentamento entre tradição e mudança foi o cenário para o surgimento do trio que formou a vanguarda da literatura ídish moderna. Scholem Aleichem, Itzhak Leibus Peretz e Mendele Moicher Sforim construíram uma obra monumental, ancorada no idioma de comunicação que os judeus ashquenazitas usaram durante séculos. Asfixiado pelo genocídio nazista, que trucidou milhões de praticantes da língua, pela marginalização provocada pelo ressurgimento do hebraico (em nome do projecto nacional, o sionismo queria apagar as pegadas da chamada diáspora) e pela cada vez maior inserção nas sociedades circundantes, o ídish praticamente deixou de existir. Resume-se, hoje, a alguns grotões religiosos e a estudiosos. Tristes sinais de uma extinção anunciada. Perde-se um inestimável acervo intelectual e afetivo, relegado a prateleiras empoeiradas, traduções que não conseguem reproduzir o sabor original e às últimas memórias dos que usaram o ídish para falar da grande aventura humana.
 
Tive o privilégio de ler Scholem Aleichem e I. L. Peretz no original. Meu sogro foi o diretor/redator do último jornal em ídish do Brasil. Falava e escrevia um ídish elegante, com o sotaque típico de sua Polónia natal. Certa vez, sugeriu que lêssemos um conto essencial de Peretz. Referia-se a Bontsha, o Silencioso. Bontsha era um homem comum. Passou pela vida com enorme sofrimento, “viveu como um minúsculo grão de areia na praia, entre milhões de grãos iguais”, conta Peretz. Padeceu em silêncio as piores e mais covardes agressões. Solitário, miserável, sem qualquer perspectiva de sair do buraco, morreu atropelado por uma carruagem, sem receber atendimento médico. Os doutores se recusaram a atendê-lo sem pagamento prévio. Bontsha chega ao Céu e é submetido ao julgamento divino, para saber se merece o Paraíso. O Promotor não consegue encontrar a mais remota falta que justificasse uma condenação. Sem acreditar no que ouvia, Bontsha é informado de que podia pedir o que quisesse, seu desejo de homem puro seria imediatamente atendido. Pensa um pouco e responde: Se é assim, quero um pãozinho quente com manteiga fresca todas as manhãs. “O silêncio atravessou o grande salão, e foi mais terrível do que todos os silêncios de Bontsha. Lentamente, o Juiz e os Anjos, envergonhados, abaixaram as cabeças, percebendo o terrível conformismo que tinham criado na Terra. O silêncio é rompido pelo riso ácido do Promotor”. Da primeira vez, não percebi a dimensão daquela história. Com o tempo e uma releitura cuidadosa, vi a riqueza de significados que ela contém. O silêncio dos oprimidos, as violências que silenciam e sufocam, a religião impotente e cúmplice frente ao horror, uma crítica às misérias criadas pelo Homem. Grande Peretz !
 
Fiz uma ponte atemporal com Peretz quando assisti a peça Silêncio! Uma família judia se reúne para jantar e logo se insinua que há um segredo a ser revelado. Em meio a uma pequena guerra fratricida, que se desnuda aos poucos, o patriarca permanece calado, ajudado por uns bons goles de vinho. Quando sua neta mais jovem, em quem vi as gerações que romperam os muros espirituais do gueto no século dezanove, informa que estava pesquisando a história das polacas, o circo pega fogo. Como se atreve a ressuscitar um episódio que encheu de vergonha a comunidade judaica?, esbravejou a avó. As prostitutas judias, em sua maioria enganadas por rufiões da Tzvi Migdal, a máfia judaica, não mereciam compaixão, muito menos a generosidade da memória coletiva. David, o patriarca, ouve em silêncio as demonstrações de intolerância. Vai ao limite ... e explode! Revela que é filho de uma polaca, segredo que carregara por toda a vida. Conta o martírio daquelas moças, discriminadas, marginalizadas, condenadas ao esquecimento. Dos filhos que tiveram e não puderam criar. E pergunta: De onde vem o respeito por uma pessoa? De onde ela vem ou de quem ela é? Seu rosto desenha angústia e alívio. Rompido o silêncio, há um abalo sísmico na sala, uma revolução... silenciosa. Ninguém conseguiria mais ser o que era. As palavras e seu potencial transformador.
 
Somos animais à caça de palavras. Quem escreve, conhece o drama dos espaços em branco. Palavras são perigosas. Como dizia um ex-analista, muitas vezes elas mais velam do que revelam. São ameaçadoras. Em 1553, o papa Júlio III considerou que o Talmud, condensação de interpretações da Torá, não passava de heresia escrita. Não satisfeito em confiscar todos os exemplares disponíveis, ordenou que fossem queimados em praça pública. Roma testemunhou essa virulência piromaníaca, continuação gráfica das fogueiras da Inquisição. Quatro décadas depois, a Igreja proibiu o estudo do Talmud em qualquer versão ou edição. Queimar livros, ou seja, incendiar ideias e robustecer silêncios, foi política da Igreja na reconquista católica da Espanha, no final do século quinze. Bibliotecas inteiras foram destruídas. Os nazistas seguiram essa infâmia, jogando na fogueira milhares de livros “perigosos”. Thomas e Heirich Mann, Walter Benjamin, Remarque, Einstein, Marx, Brecht, Heine e tantos outros cometiam um crime hediondo: pensavam e rompiam silêncios. Durante a ditadura, os militares brasileiros não chegaram a queimar livros. Contentaram-se com a censura e, numa violência paranóica, com a famigerada Lei Falcão. Criada em 1976, proibia que os candidatos falassem durante a chamada propaganda eleitoral gratuita. Apareciam fotos e uma voz lia um pequeno currículo. Ditadores têm fome de silêncio.
 
Há silêncios eloquentes. No documentário Santiago, o diretor João Moreira Salles relembra uma passagem de sua família. Morto e cremado o pai, um dos irmãos de João leva as cinzas para o jardim da casa de sua infância e as mistura com terra. Era para fazer crescer um pé de silêncio. Um silêncio especial, farto de memórias. Memórias que haviam tornado suportável a vida solitária de Santiago, mordomo dos Moreira Salles por mais de trinta anos.
 
Hora de falar, hora de calar. Hora de usar palavras, hora de ouvir o som do silêncio (obrigado, Simon e Garfunkel). Assim somos, na longa e tantas vezes inútil jornada em busca de significados para a vida.

 

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