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Decifrando a estratégia chinesa de “circulação dupla”

09-10-2020 - Yu Yongding

Em Maio, a liderança central da China proclamou  que iria “melhorar totalmente as vantagens do mercado super-largo (do país) e do potencial de demanda interna para estabelecer um novo padrão de desenvolvimento que inclua circulações duplas nacionais e internacionais que complementem umas às outras”. Desde então, “circulação dupla” tem sido o tema de debates intensos dentro e fora da China.

Será que o anúncio sinaliza uma mudança fundamental no paradigma chinês de crescimento ou na estratégia de desenvolvimento do país? Por que este novo conceito foi introduzido, e que mudanças em política económica ele irá trazer?

Para responder a estas perguntas, pode-se visitar brevemente o processo de “reforma e abertura” da China desde seu início, no fim da década de 70. Próximo ao término daquele período, a principal barreira que impedia a China de descolar economicamente era uma escassez de reservas de moeda estrangeira. Legisladores se viram diante do que parecia um beco sem saída: sem reservas estrangeiras, a China não podia estimular suas exportações, e sem um crescimento considerável das exportações, o país não conseguia ganhar e acumular o volume mínimo necessário de reservas.

No caso, a China teve sorte. A ascensão do sector de Fabricantes de Equipamentos Originais (insumos de produção) nos anos 70 deu à China uma janela de oportunidade para romper o impasse. A produção dos FEO começou a prosperar nas regiões costeiras do Sudeste da China durante o fim da década de 70 e início da de 80. Apesar de possuírem poucas ou nenhuma reserva de moeda estrangeira, as empresas de FEO conseguiram importar e processar partes e componentes que vinham sendo terceirizados por empresas estrangeiras. Estes produtos finais, com o valor agregado fornecido pelas empresas chinesas, foram então vendidos nos mercados internacionais.

O comércio de processamento permitiu à China alavancar sua vantagem competitiva em mão de obra abundante e capacitada de baixo custo. Aos poucos, um ciclo de retornos – da importação de produtos intermediários ao processamento à exportação – foi estabelecido. A cada rodada, as empresas chinesas conseguiram acumular mais reservas. E este aumento nas reservas estrangeiras, por sua vez, permitiu a importação de produtos mais intermediários para processamento e exportação.

Por meio deste ciclo virtuoso de importação e exportação, a China acumulou reservas estrangeiras em ritmo acelerado. Enormes fluxos de capital – resultado da política económica preferencial da China, de investimento exterior directo – só fortaleceram esta tendência. Em 1988, o pesquisador chinês Wang Jian cunhou o termo “grande circulação internacional” para descrever a estratégia chinesa de desenvolvimento liderado por exportações.

A estratégia se revelou um enorme sucesso. Em 1981, as exportações e importações chinesas totalizavam pouco mais de US$ 22,5 bilhões e US$ 21,7 bilhões, respectivamente. Até 2013, o comércio total da China chegou a quase US$ 4,2 triliões, tornando o país o líder de comércio mundial. Nestas três décadas, o PIB chinês subiu  do 17 o. lugar no mundo, atrás apenas da Holanda, para o segundo, ultrapassando o Japão em 2010.

Porém, estratégias de promoção de exportação podem se auto invalidar quando uma economia cresce além dum certo ponto. Após 40 anos de expansão sob o grande modelo de circulação internacional, a China não é mais uma economia pequena, e o impacto global de seu foco em exportação não é mais desprezível. De fato, desde a virada do século, o preço de qualquer produto que a China esteja comprando tende a aumentar, enquanto o preço do que quer que ela venda cai.

Pior ainda: o incansável foco em exportações da China vem provocando (de modo justificado ou não) fortes reacções proteccionistas dos países importadores. Os persistentes superávits chinesas de comércio e conta de capital vêm se traduzindo em um acúmulo persistente de reservas de câmbio estrangeiras, que chegou a US$ 3 triliões em 2014 – volume muito acima do necessário para garantir liquidez.

Igualmente preocupante, apesar do fato dos activos externos líquidos da China estarem acima de US$ 2 triliões, é o fato de o país vir registando déficits de rendimento de investimentos há mais de uma década. Isso sugere que há algo bastante errado com a alocação inter-temporal e transfronteiriça de recursos chineses.

Por sua vez, há tempos o governo chinês sabe que o sucesso da grande estratégia de circulação nacional está criando novos problemas. No 11 o. Plano de Cinco Anos da China, publicado no início de 2006, as autoridades declararam o seguinte: “O crescimento da China deve se basear na demanda interna, especialmente na demanda por consumo. Os estímulos ao crescimento económico devem mudar de crescimento do investimento e das exportações para crescimento equilibrado entre consumo e investimento, assim como crescimento equilibrado entre demanda interna e externa.”

Só que a mudança de rota económica da China já havia começado a essa altura, como demonstrado pelo fato de que as relações comércio/PIB e exportação/PIB tiveram seu auge em 2006, com 65% e 36%, respectivamente. Entre 2008 e 2018, as exportações líquidas enquanto parcela do PIB chinês caíram de 10% para 1%. E em quase todos os anos desde 2009, as exportações líquidas têm contribuído de modo negativo para o crescimento do PIB.

Diante destas tendências, está claro que a introdução de um novo conceito – a circulação dupla – não implica nenhuma mudança fundamental no paradigma de crescimento chinês. Não importa o que aconteça, a China jamais dará as costas ao resto do mundo.

Ainda assim, a política do governo Trump de “separação” e sanções têm deixado a China sem escolha a não ser dobrar a aposta em vincular crescimento económico a demanda interna e no apoio às inovações nacionais, para garantir uma posição sólida nas cadeias de valor globais. Este imperativo talvez explique o porquê de as lideranças chinesas terem começado a enfatizar a circulação dupla. Com seu enorme mercado interno de 1,4 bilhão de pessoas e capacidade de produção bastante avançada, a China irá sobreviver com o nome que for.

YU YONGDING

Yu Yongding, ex-presidente da Sociedade Chinesa de Economia Mundial e director do Instituto de Economia e Política Mundial da Academia Chinesa de Ciências Sociais, actuou no Comité de Política Monetária do Banco Popular da China de 2004 a 2006.

 

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