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A Ameaça Republicana á República

09-10-2020 - Joseph E. Stiglitz

É do conhecimento geral que Nero tocava lira enquanto Roma pegava fogo e da mesma forma, o presidente dos EUA, Donald Trump, se vangloria ao acertar os buracos em seus deficitários campos de golfe, enquanto a Califórnia está queimando – e mais de 200.000 americanos morreram de COVID-19 – para o qual ele próprio agora testou positivo. Assim como Nero, Trump, sem dúvida, será lembrado como personagem político excepcionalmente cruel, desumano e possivelmente louco.

Até recentemente, a maioria das pessoas ao redor do mundo tinha sido exposta a essa tragédia americana em pequenas doses, por meio de pequenos clipes de Trump contando mentiras e falando parvoíces no noticiário nocturno ou nas redes sociais. Mas no final de Setembro, dezenas de milhões de pessoas assistiram a um espectáculo de 90 minutos, anunciado como “debate” presidencial, no qual Trump demonstrou inequivocamente que não reúne as condições para o cargo de – e  porque tantas pessoas questionam sua saúde mental.

Certamente, ao longo dos últimos quatro anos, o mundo vem assistindo ao jogo desse mentiroso patológico batendo cada vez mais novos recordes – registando cerca de 20.000 inverdades  ou declarações enganosas a partir de meados de julho, conforme contagem realizada pelo Washington Post. Que tipo de debate pode haver quando um dos dois candidatos não tem credibilidade e nem aí para debater?

Quando questionado sobre a recente denúncia publicada pelo New York Times mostrando que ele havia pago apenas US$ 750 de imposto de renda, nos anos de 2016 e 2017 – não tendo pago nada durante muitos anos antes disso, Trump hesitou e então afirmou – sem prova nenhuma – que  havia pago "milhões" aos cofres públicos. Ele obviamente estava falando qualquer coisa que pudesse mudar para um assunto que lhe fosse mais favorável e não há nenhuma razão para quem quer que seja acreditar no que ele diz.

Ainda mais perturbador foi sua recusa em denunciar os supremacistas brancos e grupos extremistas violentos como os Proud Boys, a quem instruiu para "recuar e aguardar". Juntamente com sua recusa em se comprometer com uma transição pacífica de poder e esforços persistentes para deslegitimar o processo de votação, o comportamento de Trump na corrida para as eleições tem representado cada vez mais uma flagrante ameaça à democracia americana.

Quando eu era criança em Gary, Indiana, aprendemos sobre as virtudes da Constituição dos Estados Unidos – desde o judiciário independente e a separação de poderes até a importância do adequado funcionamento do sistema de freios e contrapesos. Nossos antepassados ​​pareciam ter criado um conjunto de grandes instituições (embora também fossem culpados de hipocrisia ao declarar que todas as pessoas são criadas iguais, desde que não sejam mulheres ou pessoas de cor). Quando actuei como economista-chefe do Banco Mundial no final da década de 1990, viajávamos pelo mundo dando palestras sobre boa governança e boas instituições, e os Estados Unidos costumavam ser considerados o exemplo desses conceitos.

Não é mais assim. Trump e seus colegas republicanos lançaram uma sombra sobre o projecto americano original, lembrando-nos de quão frágeis – alguns poderiam dizer falhas – são nossas instituições e a ordem constitucional. Somos um país de leis, mas são as normas políticas que fazem o sistema funcionar. As normas são flexíveis e igualmente frágeis. George Washington, o primeiro presidente dos EUA, decidiu que cumpriria apenas dois mandatos, e isso criou uma norma que não seria quebrada até a presidência de Franklin D. Roosevelt. Depois disso, uma emenda constitucional estabeleceu o limite de dois mandatos.

Nos últimos quatro anos, Trump e seus colegas republicanos levaram o desrespeito às normas a um novo patamar, desonrando a si mesmos e minando as próprias instituições que deveriam defender. Como candidato em 2016, Trump se recusou a liberar as próprias declarações de impostos. E enquanto esteve no cargo, demitiu inspectores gerais por terem feito suas obrigações,  repetidamente ignorou conflitos de interesse e se beneficiou do cargo, sabotou cientistas independentes e agências cruciais, tentou a supressão total de eleitores e extorquiu governos estrangeiros em um esforço para difamar seus oponentes políticos .

Por um bom motivo, nós, americanos, agora nos perguntamos se nossa democracia poderá sobreviver. Afinal, uma das maiores preocupações de nossos ancestrais fundadores era que um demagogo pudesse surgir e destruir o sistema por dentro. É em parte por isso que eles se  estabeleceram em uma estrutura de democracia representativa indireta, com o Colégio Eleitoral e aquilo que deveriam ser o robusto sistema de freios e contrapesos. Mas depois de 233 anos, essa estrutura institucional não é mais robusta o bastante. O Partido Republicano, particularmente seus representantes no Senado, falhou totalmente em sua responsabilidade de controlar um executivo perigoso e errático enquanto ele abertamente declara guerra contra a ordem constitucional e o processo eleitoral dos EUA.

Há uma gigantesca tarefa pela frente. Além de se responsabilizar por uma pandemia fora de controle, pelo aumento da desigualdade e pela crise climática, também há uma necessidade urgente de resgatar a democracia americana. Como os republicanos há muito negligenciam seus juramentos ao assumirem seus cargos, as normas democráticas terão de ser substituídas por leis. Mas isso não será fácil. Quando devidamente observadas, as normas costumam ser preferíveis às leis, porque podem ser mais facilmente adaptadas às circunstâncias futuras. Especialmente na beligerante sociedade americana, sempre haverá aqueles dispostos a contornar as leis em benefício dos próprios interesses e violando seu espírito.

Mas quando um lado não joga mais conforme as regras, grades de protecção mais fortes precisam ser introduzidas. A boa notícia é que já temos um roteiro. A Lei do Povo de 2019, adoptada pela Câmara dos Representantes dos EUA no início do ano passado, estabeleceu uma agenda para expandir os direitos de voto, limitar o gerrymandering partidário, fortalecer as regras éticas e limitar a influência do dinheiro de doadores privados na política. A má notícia é que os republicanos sabem que estão em número cada vez menor na maioria das questões críticas da actual política. Os americanos querem um controle de armas mais forte, um salário mínimo mais alto, sensatas regulamentações ambientais e inanceirasseguro saúde acessível, financiamento ampliado para educação pré-escolar, melhor acesso à faculdade e maiores limitações de dinheiro na política.

A vontade claramente expressa da maioria coloca o Partido Republicano em uma posição impossível: O partido não pode simultaneamente defender a própria agenda impopular e ao mesmo tempo endossar uma governança honesta, transparente e democrática. É por isso que o partido agora está abertamente em guerra contra a democracia americana, duplicando esforços para desabilitar eleitores, politizar o judiciário e a burocracia federal e perpetuar a regra da minoria por meio de tácticas como gerrymandering partidário.

Uma vez que o Partido Republicano já fez seu pacto com o diabo, não há razão para esperar que seus membros apoiem quaisquer esforços para renovar e proteger a democracia americana. A única opção que resta aos americanos é conseguir uma vitória esmagadora para os democratas em todos os níveis nas eleições do próximo mês. A democracia dos Estados Unidos está em jogo. Se cair, os inimigos da democracia do mundo inteiro vencerão. 

JOSEPH E. STIGLITZ

Joseph E. Stiglitz, vencedor do prémio Nobel de economia e professor da Universidade de Columbia, é economista-chefe do Instituto Roosevelt e ex-vice-presidente sénior e economista-chefe do Banco Mundial. Seu livro mais recente é People, Power and Profits: Progressive Capitalism for an Age of Discontent.

 

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