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A cruzada profana da América contra a China

14-08-2020 - Jeffrey D. Sachs

Muitos cristãos evangélicos brancos dos Estados Unidos há tempos acreditam que a América tem uma missão divina de salvar o mundo. Influenciada por essa mentalidade de cruzada, a política externa americana quase sempre trocou a via diplomática pela da guerra. E há risco de que vá fazer isso outra vez.

No mês passado, o secretário de Estado americano, Mike Pompeo, partiu em outra cruzada evangélica, desta vez contra a China. O discurso dele foi extremista, simplista e perigoso - e pode perfeitamente colocar os EUA a caminho de um conflito com a China.

Segundo Pompeo, o presidente chinês, Xi Jinping, e o Partido Comunista Chinês (PCC) mantêm “um desejo de hegemonia global há décadas”. Isto é irónico. Só um país - os EUA - tem uma estatégia de defesa que defende que ele seja a “potência militar preponderante no mundo”, com “equilíbrios regionais de poder favoráveis nas regiões do Indo-Pacífico, Europa, Oriente Médio e Hemisfério Ocidental”. O relatório oficial de defesa chinês, em comparação, afirma que “a China jamais seguirá o caminho tradicional das grandes potências em busca de hegemonia”, e que “à medida que a globalização económica, a sociedade da informação e a diversificação cultural se desenvolvem em um mundo cada vez mais multipolarizado, a paz, o desenvolvimento e a cooperação mútua permanecem as tendências irreversíveis do nosso tempo”.

Faz lembrar a reprimenda de Jesus: “Hipócrita, tira primeiro a trave do teu olho, e então cuidarás em tirar o argueiro do olho do teu irmão” (Mateus 7:5). O gasto militar americano totalizou US$ 732 biliões em 2019, quase três vezes os US$ 261 biliões gastos pela China.

Além disso, os EUA têm cerca de 800  bases militares em outros países, enquanto a China tem  uma (uma pequena base naval em Djibuti). Os EUA têm várias bases militares próximas da China, que não tem base alguma perto dos EUA. Os EUA possuem 5 , 8  mil ogivas nucleares; a China, cerca de 320. Os EUA têm 11  porta - aviões; a China, um. Os EUA deram início a várias guerras em outros países nos últimos 40 anos; a China não começou nenhuma (embora tenha sido criticada por confrontos em fronteiras, o mais recente deles com a Índia, que são quase uma guerra).

Os EUA vêm repetidas vezes rejeitando ou abandonando tratados das Nações Unidas e de organizações da ONU nos últimos anos, entre elas a Unesco, o Acordo do Clima de Paris e, mais recentemente, a Organização Mundial de Saúde, enquanto a China apoia os processos e agências da ONU. O presidente americano, Donald Trump, recentemente ameaçou com sanções a equipe do Tribunal Penal Internacional. Pompeo protesta contra a repressão cometida pela China principalmente contra a população uigur de maioria hindu do país asiático, mas o ex-consultor de segurança nacional de Trump, John Bolton, afirma que, reservadamente, Trump deu aval à acção da China, e pode ter até mesmo a incentivando.

O mundo deu relativamente pouca atenção ao discurso de Pompeo, que não ofereceu qualquer evidência para sustentar suas declarações a respeito da ambição hegemónica chinesa. A rejeição da hegemonia americana pela China não significa que a própria China busque hegemonia. De fato, a não ser nos EUA, poucos crêem que a China busque um predomínio global. Os objectivos explicitamente declarados da China incluem se tornar “uma sociedade moderadamente próspera” até 2021 (ano do centenário do PCC) e “um país plenamente desenvolvido” até 2049 (ano do centenário da República Popular).

Não só isso, estimado em US$ 10.098 em 2019, o PIB per capita da China ficou abaixo de um sexto do dos EUA (US$65.112) – dificilmente um alicerce de supremacia global. A China ainda tem um longo caminho pela frente para atingir até mesmo suas metas básicas de desenvolvimento económico.

Presumindo-se que Trump perca a eleição presidencial de Novembro, é provável que o discurso de Pompeo não receba muita atenção. Certamente os democratas vão criticar a China, mas sem o exagero descarado de Pompeo. No entanto, se Trump vencer, o discurso de Pompeo pode ser o prenúncio do caos. O evangelismo de Pompeo é real, e os evangélicos brancos são a base política actual do Partido Republicano.

Os animados excessos de Pompeo têm profundas raízes na história americana. Como recapitulei em meu último livro A New Foreign Policy (Uma nova política externa, em tradução livre do inglês) , os colonos protestantes ingleses acreditavam estar fundando uma Nova Israel na nova terra prometida, com as providenciais bênçãos de Deus. Em 1845, John O’Sullivan cunhou a frase  “destino m anifesto” para justificar e celebrar a violenta anexação da América do Norte pela América. “Tudo isso será nossa história futura”, escreveu ele em 1839, “para estabelecer na terra a dignidade moral e salvação do homem - a imutável verdade e beneficência de Deus. Para esta missão abençoada pelas nações do mundo, afastadas que estão da fértil luz da verdade, foi a América escolhida...”

Baseando-se em tais visões exaltadas de sua própria beneficência, os EUA se envolveram em escravidão em massa até a Guerra Civil e, em seguida, em apartheid em massa; assassinaram indígenas nativos ao longo do século 19 e os subjugaram depois disso; e, com o fechamento da fronteira ocidental, estenderam a outras nações o destino manifesto. Posteriormente, com o início da Guerra Fria, o fervor anticomunista levou os EUA a travar guerras desastrosas no Sudeste Asiático (Vietname, Laos e Camboja) nas décadas de 60 e 70, e guerras brutais na América Central nos anos 80.

Após os ataques terroristas de 11 de Setembro de 2011, o ardor evangélico foi dirigido contra o “Islão radical” ou “fascismo islâmico”, com quatro guerras americanas preferidas - no Afeganistão, Iraque, Síria e Líbia -, que continuam a ser fracassos até hoje. De repente, a suposta ameaça existencial do Islão radical foi sendo esquecida, e a nova cruzada mira o PCC.

O próprio Pompeo é um literalista que crê que o fim dos tempos, a batalha apocalíptica entre o bem e o mal, está próximo. Pompeo descreveu suas crenças em um discurso de  2015, quando era parlamentar pelo Kansas: a América é uma nação judaico-cristão, a maior da história, cujo dever é travar as batalhas de Deus até o Arrebatamento, quando os seguidores renascidos de Cristo, como Pompeo, serão levados aos céus no Juízo Final.

Evangélicos brancos representam apenas cerca de 17%  da população a dulta americana, mas englobam em torno de 26%  dos eleitores. Em sua maioria, eles votam em republicanos (estimativa de 81%  dos votos de evangélicos em 2016), tornando-os a base eleitoral mais importante do partido. Isso dá a eles poderosa influência sobre a política republicana, e especialmente na política externa, já que os republicanos controlam a Casa Branca e o Senado (com seus poderes de ratificação de tratados). Um total de 99% dos parlamentares republicanos são cristãos, dos quais cerca de 70% são protestantes, incluindo uma proporção significativa, ainda que desconhecida, de evangélicos. 

Sem dúvida, os democratas também abrigam alguns políticos que proclamam o excepcionalismo americano e lançam guerras de cruzadas (por exemplo, as intervenções do presidente Barack Obama na Síria e na Líbia). De modo geral, contudo, o Partido Democrata é menos ligado a declarações sobre a hegemonia americana do que a base evangélica do Partido Republicano.

A retórica inflamatória e antichinesa de Pompeo poderia se tornar ainda mais apocalíptica nas próximas semanas, no mínimo para atiçar a base republicana para a eleição. Se Trump for derrotado, como parece provável, o risco de um confronto americano com a China irá recuar. Porém, caso ele continue no poder, seja por vitória eleitoral genuína, fraude eleitoral ou até mesmo um golpe (tudo é possível), a cruzada de Pompeo provavelmente seguiria em frente, e poderia muito bem levar o mundo à beira da guerra que ele espera e talvez até mesmo busque.

JEFFREY D. SACHS

Jeffrey D. Sachs, professor de desenvolvimento sustentável e professor de política e gestão de saúde da Universidade de Columbia, é director do Centro de Desenvolvimento Sustentável da Colômbia e da Rede de Soluções de Desenvolvimento Sustentável da ONU. Ele actuou como consultor especial de três secretários-gerais da ONU. Seus livros incluem O Fim da PobrezaRiqueza ComumA Era do Desenvolvimento Sustentável, Construindo a Nova Economia Americana e, mais recentemente, Uma Nova Política Externa: Além do Excepcionalismo Americano.

 

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