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Bruno Carvalho: «Nenhum jornalista é mais imparcial por esconder as suas convicções»

06-01-2023 - João Manso Pinheiro

De regresso do Donbass, onde trabalhou nos últimos meses, Bruno Carvalho falou ao  AbrilAbril  sobre o papel do jornalista em situação de guerra, os perigos a que se sujeitou e a ausência de pluralidade na comunicação social.

Numa cena do documentário  Salvador, Itália  (2018), Nanni Moretti entrevista um torturador chileno, preso pelos crimes cometidos durante a ditadura de Pinochet. Sendo confrontado pelo torcionário pela forma tendenciosa como estaria a conduzir a conversa, Moretti, embora dê todo o espaço para o torturador afirmar tudo o que lhe interessa, esclarece rapidamente: Ele, o realizador, o homem, não é imparcial.

 Nanni Morreti não renunciou à parcialidade.

Foi o ponto de partida para a conversa com Bruno Amaral de Carvalho, jornalista que passou seis dos últimos nove meses na região do Donbass, a cobrir os efeitos devastadores da guerra na Ucrânia nestas populações, martirizadas por oito longos anos de guerra civil, bombardeamentos e milhares de vítimas. 

Das fornalhas de Azovstal, em Mariupol, aos massacrados bairros de Donetsk, das movimentações relâmpago das tropas ucranianas e russas na região de Luhansk aos referendos promovidos pelas autoridades pró-russas nas quatro províncias anexadas, Bruno Carvalho não foi apenas o único jornalista português a acompanhar, de perto, a guerra no Donbass. Foi um de poucos jornalistas europeus que se recusou a ceder ao unanimismo prevalente nas redacções.

Um jornalista tem de abdicar das suas convicções para cumprir correctamente as suas funções? O código deontológico exige um trabalho independente, mas nunca imparcial ou que atente contra a consciência do jornalista...

Todas as pessoas têm convicções, incluindo os jornalistas. Eu prefiro o Joe Strummer ao Sid Vicious, gosto mais de García Márquez do que de Vargas Llosa, sou mais Maradona do que Pelé, prefiro Gillo Pontecorvo a Steven Spielberg. Cada um de nós traz um mundo dentro de si.

Nenhum jornalista é mais independente ou imparcial por esconder as suas convicções. Por isso é que há um conjunto de ferramentas jornalísticas para contornarmos o mais possível a influência das nossas escolhas no nosso trabalho. Até porque há outros factores no jornalismo que também têm influência nas nossas abordagens aos acontecimentos. Por exemplo, a linha editorial, que depende muito das convicções e dos interesses de quem financia os meios de informação.

Eu nunca escondi as minhas convicções porque sou um cidadão consciente dos seus direitos e disposto a exercê-los também como forma de os defender. Os jornalistas não têm menos direitos do que o resto da população.

Felizmente, tive um grande jornalista como professor que dizia aos seus alunos que o primeiro objectivo de quem trabalha na imprensa deve ser a ambição de mudar o mundo. Nesse sentido, o Oscar Mascarenhas valorizava os alunos que tinham uma vida cívica activa, fosse em teatros, associações desportivas, humanitárias ou políticas. Vivemos num mundo que nos quer impôr a não política. Ou seja, a ideia de que a política deve ser exclusiva dos que exercem cargos políticos e a democracia quer-se fechada nas instituições, com cidadãos cada vez menos activos e incómodos.

Faz-me confusão que haja quem ache que os jornalistas devem abdicar dessa intervenção enquanto cidadãos na vida colectiva. Sobretudo quando houve vários jornalistas que o fizeram. Recordo o caso do Mário Mesquita, do Alfredo Maia, da Carla Castelo e de tantos outros. A Comissão da Carteira estabelece algumas incompatibilidades, não apenas no exercício da actividade política, e apenas cargos a tempo inteiro são incompatíveis com o jornalismo.

Acabaste por te tornar mais notório do que muitas das tuas reportagens. Não é uma posição desconfortável para um jornalista, que supostamente não devia ser notícia?

Isso aconteceu, sobretudo, quando diferentes figuras me atacaram, como a ex-candidata presidencial Ana Gomes, a jornalista Fernanda Câncio, o secretário de Estado João Galamba, a escritora Inês Pedrosa, entre outros. O  Correio da Manhã  fez eco dessas acusações, assim como a revista  Visão . Admito também que, para alguns jornalistas, o facto de eu ser um  outsider  os tenha deixado desconfortáveis. De repente, alguém que nunca esteve nos principais meios portugueses publicava reportagens no  Público  e na  CNN .

Devido a esses ataques, o  Público , com o qual tinha um compromisso verbal, apenas me comprou uma reportagem. Essas pessoas tentaram desacreditar-me e eu não podia ficar calado. Houve acusações, colando-me à ideia de eu que era putinista ou pró-russo, que num contexto de guerra são perigosas. Imagina que eu era capturado pelas forças ucranianas e que esses soldados compravam essas acusações contra mim.

Ainda assim, recebi muitas mensagens de solidariedade de muita gente, incluindo jornalistas, mas o Sindicato dos Jornalistas evitou defender-me. Houve vários jornalistas com muitos anos de experiência que me disseram que nunca viram nada assim.

Naturalmente, tive de assumir publicamente a minha própria defesa, assumindo um destaque que nunca me foi confortável, quando a única coisa que queria era dedicar-me, de forma plena, ao meu trabalho no Donbass.

Porque é que achas que, num estado de direito democrático, com uma imprensa livre e plural, as redacções tenham tomado a opção consciente de rejeitar qualquer investigação a um dos lados de uma guerra na zona do Donbass?

Repara, ao longo de todos estes meses foram vários os jornalistas portugueses e estrangeiros que me contactaram para os ajudar a entrar no Donbass. Eles queriam. Em vários desses casos, as direcções de informação não os deixaram ir. Portanto, há, desde logo, uma intencionalidade em cobrir apenas um lado da guerra, o que deixa a descoberto a excepcionalidade da  CNN . Até agora, nas últimas décadas, estes meios sempre tiveram repórteres no lado do invasor. O problema é que agora o invasor não se chama Estados Unidos da América.

Agora, nunca me verão dizer que não deve haver jornalistas no lado controlado pela Ucrânia. Essa é a grande diferença. 

Hoje, jornalistas como Kapucinsky, Hemingway ou Robert Fisk são vistos como exemplos. O primeiro escreveu um grande livro sobre o trabalho que fez quando acompanhava a guerra civil em Angola, no lado controlado pelo MPLA, o segundo esteve no lado republicano da guerra civil espanhola e o terceiro fez uma entrevista ao Bin Laden. Entrámos num nível tal de controlo editorial e político, onde encaixo a proibição de canais russos na Europa, que são vários os meios que rasgaram de forma aberta e pública as antigas declarações de amor à objectividade e imparcialidade.

Sob a acusação de ser um espião russo, prenderam um jornalista basco na Polónia [ Pablo González, colaborador frequente do Público espanhol e ao serviço do La Sexta TV, está preso há mais de 9 meses, sem julgamento] quando cobria a crise dos refugiados e ninguém parece demasiado preocupado com isso. Voltámos à guerra fria e ao maccarthismo.

Como analisas a cobertura da guerra feita pelos orgãos noticiosos portugueses? Notas algum contraste em relação a outros meios  mainstream  europeus?

Não. Em geral, seguem a mesma linha. Há excepções, contudo. Por exemplo, três canais italianos, incluindo a  RAI , tiveram repórteres no lado controlado pelos russos. A Grécia também. De resto, há uma informação muito uniforme, o que não deixa de ser curioso.

Durante muitos anos justificava-se essa uniformidade porque a maioria dos meios não queria gastar dinheiro a enviar jornalistas para determinados cenários de guerra. Então, todos compravam as mesmas reportagens das principais agências. Agora, houve uma aposta muito grande em enviar repórteres mas a abordagem é praticamente igual em todo o lado. Algo que falta muito e, parece-me intencional, é a ausência de contexto.

O objectivo é claro: que não haja uma leitura histórica do conflito.

As populações de Donetsk, Mariupol, estranhavam a tua presença? Em certo momento eras dos únicos jornalistas a trabalhar na região. Com tão pouca presença mediática europeia, não estranhavam um português? Estavam satisfeitas por alguém as ouvir? 

Houve um momento em que era o único repórter a trabalhar para meios ocidentais em todo o lado controlado pelos russos. Não olho para isso como um feito mas como uma tragédia. É a morte do jornalismo.

Naturalmente, havia muita surpresa e também desconfiança. Afinal de contas, eu venho de um país cujos impostos são usados também para financiar as armas que matam civis em Donetsk. No Hospital de Traumatologia da cidade, houve vários pacientes que se recusaram a falar comigo por isso mesmo, por ser um jornalista de um país da NATO. Numa reportagem num mercado, houve uma idosa que gritou comigo e outro repórter acusando-nos de sermos responsáveis pelo que lhes estava a acontecer. Mas aconteceu em muitas ocasiões o contrário, entendendo o nosso trabalho, agradecendo e até encorajando.

Em Mariupol, a situação era tão desesperante que nos pediam ajuda para comunicarmos com familiares a viver no estrangeiro. Ali, até de enfermeiros fizemos para salvar a vida a uma idosa que apanhou com os fragmentos de uma mina anti-pessoal. Evitar quase sempre trabalhar em excursões organizadas pelas forças russas tornava o trabalho mais livre mas também mais perigoso. Foi um trabalho que exigiu muito tacto e sensibilidade com os civis, também com os militares, mas creio que a avaliação geral é positiva.

Já trabalhaste noutros cenários de guerra e conflito. Todos os conflitos são diferentes, mas há alguma características no Donbass que destaques?

Estive, em 2017, num acampamento das FARC, na Colômbia, num momento prévio à entrega de armas mas já durante o processo de paz. Havia uma tensão natural e prosseguiam os assassinatos de líderes sociais. Contudo, era um contexto totalmente diferente. No ano seguinte, visitei o Donbass e foi o meu primeiro contacto com a guerra civil que havia começado em 2014. Aí já ouvi alguns bombardeamentos, mas esporádicos. Apesar da violação constante dos Acordos de Minsk, havia já um conflito de baixa intensidade.

O que acontece hoje é de uma dimensão totalmente diferente. Caem cerca de cem projécteis todos os dias em Donetsk. Em média, há mais de um morto por dia na cidade. Mais de 2 100 feridos desde Fevereiro. E estamos a falar de uma cidade que não está em disputa, não tem combates terrestres, não tem homens a combater no seu interior. Mariupol, sim, estava em disputa e foi, de facto, um inferno. Havia mortos por todas as partes. 

Parece-me que é um erro dizer que esta guerra é apenas entre a Rússia e a Ucrânia. Há milhares de combatentes estrangeiros do lado ucraniano, armas ocidentais, estrategas militares ocidentais a assessorar operações, quando não a comandar, Kiev tem o apoio da inteligência dos satélites ocidentais, etc... Do outro lado, há combatentes das diversas realidades nacionais da Federação Russa, há os soldados do Donbass a combater desde 2014, assim como os cidadãos mobilizados desse mesmo território, há o grupo Wagner... Ou seja, há uma complexa teia diversa de afinidades e contradições.

Do ponto de vista mais geral, esta guerra representa um momento histórico de grande significado porque põe frente a frente duas realidades geopolíticas que se vinham confrontando de forma económica, política e também militar, mesmo que de forma indirecta, sobretudo no Médio Oriente, em que o Ocidente vê o seu poder questionado. É ingénuo acreditar que a guerra vai acabar sem que Washington ou Moscovo tenham uma palavra a dizer. A implicação do Ocidente é, hoje, tão óbvia que isso tem um preço nas nossas economias. 

Como vês a situação actual do Donbass? Depois da realização de referendos sem particular credibilidade, com enormes migrações internas, milhões de pessoas a abandonar a região, é expectável uma estabilização da situação?

A credibilidade dos processos eleitorais há muito que é algo secundário no contexto internacional. Há uma avaliação subjectiva em função dos interesses de cada país. O Kosovo tornou-se independente sem referendo, Juan Guaidó foi reconhecido presidente por muitos países sem qualquer eleição. Isso parece-me particularmente grave. À luz do que vi, de facto, não foram referendos que cumprissem aquilo que consideramos serem processos democráticos, embora não me pareça haver grandes dúvidas sobre a vontade daquela gente.

Basta ver o histórico eleitoral desde 1991 até 2014. Há um padrão praticamente inalterado de vitórias de forças pró-russas e comunistas. Toda a gente que entrevistei me disse que pouco lhe importava o não reconhecimento dos referendos por parte do Ocidente, uma vez que o Ocidente pouco se importou com a situação destas pessoas nos últimos oito anos. Parece-me que teria sido um passo para a paz se a Ucrânia e a Rússia aceitassem a realização de referendos com todas as garantias dando a palavra às populações com observadores dos dois lados. Não me parece que haja espaço para isso quando Kiev não cumpriu sequer os Acordos de Minsk em que estava previsto dar autonomia a estes territórios.

A Ucrânia não vai aceitar nunca a anexação do Donbass e das restantes regiões, incluindo a Crimeia, e, nesse sentido, a única perspectiva de estabilização virá com o fim da guerra que dependerá mais de Washington do que de Kiev. Sozinha, a Ucrânia não tem condições de manter esta dinâmica militar.

As populações do Donbass fazem ideia da dimensão do apoio à figura de Zelensky na União Europeia? Nos meios de comunicação, institucionais, nas redes sociais...

Sim, há essa noção. Para eles, o inimigo não é apenas Zelensky. São também os Estados Unidos e a União Europeia. E até a ONU é uma instituição questionada, sobretudo Guterres, acusando-o de declarações parciais. Há uma visão da Europa, não isenta de preconceitos, em que somos vistos como individualistas, demasiado apegados ao dinheiro e ao consumo, pouco dados aos valores da família e da comunidade, pouco solidários e, naturalmente, somos considerados fantoches dos norte-americanos. Mas também sabem que há gente que protesta, que não está de acordo com determinadas políticas e que se mobiliza contra a guerra.

O que me parece grave é que os líderes europeus fazem tudo para meter gasolina na fogueira como foi o caso de Josep Borrell, dizendo que a Europa era um jardim e o resto do mundo uma selva. Isto significa reforçar, no resto do mundo, o antagonismo ao eurocentrismo e a esta ideia de que a Europa é um oásis civilizacional no meio dos selvagens. 

Entrevista a Bruno Carvalho pelo AbrilAbril

 

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