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Bolívia e Venezuela: uso de mercenários contra governos de esquerda vira moda da América do Sul

11-06-2021 - Victor Farinelli

A conspiração do governo golpista da Bolívia para evitar a posse de Luis Arce é muito parecida ao plano, também fracassado, que Juan Guaidó tentou executar contra o governo de Nicolás Maduro na Venezuela. Poderia inspirar outros governos de direita no continente? O que o Brasil tem a ver com isso?

Uma reportagem publicada pelo The Intercept  no dia 18 de junho revelou que líderes golpistas da Bolívia, frustrados com a devastadora derrota eleitoral que sofreram em Outubro de 2020, planejaram uma operação secreta para impedir que o vencedor daquele pleito, Luis Arce, assumisse o governo.

A vitória de Arce representou a volta ao poder do MAS (Movimento Ao Socialismo), o partido que governou o país durante 13 anos, com o presidente Evo Morales, um dos seus fundadores. O economista de 48 anos foi eleito já no primeiro turno, ao obter 55% dos votos, quase o dobro do seu principal adversário, o direitista Carlos Mesa, que ficou com 28%.

Esse resultado também significou que o povo boliviano entendeu os verdadeiros motivos do golpe de Estado de 2019, e que os inimigos da democracia no país são levantaram uma falsa acusação de fraude contra Evo Morales – amparados por uma artimanha da OEA (Organização dos Estados Americanos) e seus observadores. Tanto é assim que o MAS, partido de Evo, além de vencer as presidenciais também garantiu maioria no parlamento.

Diante desse cenário desastroso, o grupo político que chegou ao poder na Bolívia após o golpe de 2019 chegou a preparar uma estratégia para não ter que entregar o poder aos eleitos. O responsável por colocar o plano em prática foi Luis Fernando López, então ministro da Defesa do regime da ditadora Jeanine Áñez. A matéria do The Intercept inclui áudios, e-mails e documentos que comprovam a contratação de um grupo de mercenários norte-americanos com sede em Miami, para que realizassem uma ação militar e impedissem a posse de Arce.

Segundo o texto dos jornalistas Laurence Blair e Ryan Grim, “vários dos conspiradores discutiram o envio de centenas de mercenários estrangeiros para a Bolívia, a partir de uma base militar americana nas proximidades de Miami. Em La Paz, eles se reuniriam com grupos de militares e de policiais aposentados, todos fieis à direita boliviana e convencidos de que era preciso evitar o retorno da esquerda”.

O plano também contou com o apoio do então ministro de governo, Andrés Murillo, que foi recentemente detido nos Estados Unidos por envolvimento em casos de corrupção. No final, a operação nunca foi executada, mas deixou evidências de sua elaboração, em um complô de golpe ainda mais flagrante do que o de Outubro de 2019.

A Operação Gideon

Se tivesse sido colocada em prática, seria a segunda acção de mercenários americanos na América do Sul contra um governo de esquerda, somente em 2020.

Poucos meses antes, em Maio daquele ano, outra empresa americanas de Miami treinou e ex-militares para que realizassem uma operação na Venezuela, com o objectivo de derrubar o presidente Nicolás Maduro. A acção foi interceptada por um grupo de pescadores, que depois, com a ajuda dos militares venezuelanos, conseguiram prender os soldados quando eles tentavam invadir o país pelo litoral.

Dias depois, em uma entrevista para a CNN, um assessor do líder opositor Juan Guaidó reconheceu que seu chefe foi o responsável por contratar os mercenários e ordenar a invasão do país.

Guaidó tentou negar a acusação, mas, depois, a empresa confirmou esse envolvimento, com documentos que continham sua assinatura, e que revelaram que o plano tinha até nome bíblico: Operação Gideon.

Após aquela ação fracassada, Juan Guaidó passou vários meses em silêncio. Retornou somente em Outubro, fazendo um chamado para boicotar as eleições legislativas no país. Ele mesmo decidiu não se candidatar à reeleição, razão pela qual deixou de ter um cargo político, em Janeiro de 2021 – embora continue afirmando ser o “presidente interino da Venezuela”, conceito que é completamente ignorado até mesmo por seus antigos aliados na oposição ao chavismo.

As duas tentativas terem terminado mal, há indícios de que não tenham sido apenas uma mera coincidência.

O frustrado retorno da hegemonia da direita

Quando Jair Bolsonaro assumiu o poder no Brasil, em 2019, a imprensa hegemónica comemorou o cenário que foi definido como “a consolidação do retorno da direita ao poder na América do Sul”, e vaticinou que esse período que se iniciava duraria ao menos uma década.

Porém, as vitórias de Alberto Fernández na Argentina, o retorno do MAS ao poder na Bolívia e as recentes vitórias eleitorais de Nicolás Maduro na Venezuela mostram que essa nova hegemonia da direita está prestes a terminar, sem ter durado sequer dois anos. Além disso, as revoltas populares no Chile e na Colômbia aumentam a esperança de que alternativas de esquerda cheguem ao poder nesses dois países em breve.

Com tudo isso, não é nem um pouco descabelado pensar que os planos de golpe militar na Bolívia e na Venezuela podem se replicar em outros países, onde a direita tampouco esteja disposta a largar o poder pacífica e democraticamente.

Nesse sentido, o que vai acontecer no Peru nos próximos dias pode ser determinante. As autoridades eleitorais já determinaram que o esquerdista Pedro Castillo venceu o segundo turno das eleições, mas o Poder Judiciário alega que precisa analisar dezenas de pedidos de anulação do pleito apresentados pela direita. Além disso, grupos reaccionários tentam fazer pressão nas ruas para obrigar os magistrados a dar uma sentença favorável à segunda colocada nas urnas, que não é uma qualquer, e sim Keiko Fujimori, filha do ex-ditador Alberto Fujimori.

Caso a decisão da Justiça seja desfavorável à direita, haverá reconhecimento dos resultados e deixarão Castillo assumir o poder? Apostar que sim se baseando numa suposta solidez institucional peruana não é uma boa ideia: basta lembrar que, desde a última eleição presidencial, em 2016, o país teve que trocar três vezes de presidente, sendo que duas dessas vezes aconteceram em um espaço de apenas uma semana, naquele conturbado mês de Novembro de 2020.

Além disso, não é só na América do Sul que essa tendência de resistir violentamente às derrotas eleitorais está virando moda. Nos Estados Unidos, em 6 de janeiro de 2021, Donald Trump chegou a incitar uma invasão dos seus seguidores ao congresso do país para impedir a oficialização da vitória do seu adversário, Joe Biden, nas recentes eleições presidenciais.

Bolsonaro e o voto impresso

No Brasil, essa onda ainda é mera especulação, mas não é difícil identificar, na retórica do próprio presidente Bolsonaro e seus aliados mais próximos, que já existe um discurso preparado para não reconhecer uma possível derrota eleitoral, baseado na ideia de que as urnas electrónicas podem ser fraudadas.

No começo deste ano, o bolsonarismo iniciou uma campanha para defender o chamado “voto impresso”, que cujo acção política é muitíssimo menor que sua actuação nas redes sociais, o que mais parece ser não uma intenção real de mudar a lei eleitoral para viabilizar essa impressão do voto, e sim uma tentativa de instalar uma ideia que pode ser usada como desculpa em Novembro de 2022.

Nesse sentido, o filósofo Vladimir Safatle foi correcto em uma entrevista recente, na que disse que resumiu o compromisso do bolsonarismo com a normalidade democrática com a seguinte reflexão: “ninguém ocupa o Estado brasileiro com 7 mil militares para sair no ano que vem”. Não se trata de uma previsão, e sim de uma constatação: as trincheiras estão prontas para que aqueles que estão no governo actualmente tentem resistir a uma derrota, se acharem que existe clima político para tanto.

Fonte: Carta Maior

 

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