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Médico português: “Muita gente vai morrer — e isto tem de se explicar com esta frieza”

06-11-2020 - Andreia Guerreiro

A NiT falou com Gustavo Carona, protagonista do vídeo com mais de 345 mil visualizações que é um alerta sobre a pandemia.

Quarta-feira, 28 de outubro. Gustavo Carona, que trabalha no Hospital Pedro Hispano, em Matosinhos, tinha recebido um convite para ir ao “Dia de Cristina”, na TVI, falar sobre a pandemia. Depois, a produção pediu-lhe para se fazer acompanhar da mãe. Foi aí que percebeu que “há um desfasamento entre a realidade hospitalar, que é de uma intensidade alucinante, e a opinião pública em geral que é de que ‘isto não está assim tão mal’. Jamais um médico pediria a alguém para ser acompanhado pela mãe nesta altura de pandemia. Por isso, Gustavo agradeceu, mas recusou o convite.

O médico, que há mais de dez anos soma missões humanitárias com os Médicos Sem Fronteiras — tendo passado por zonas de conflito e de catástrofe em países como Moçambique, República Democrática do Congo, Iraque, Afeganistão, Síria, Faixa de Gaza ou Sudão do Sul —, decidiu que estava na altura de agir.

Naquele dia gravou um vídeo a falar sobre a pandemia, com o título “Covid19 — Está a acontecer. Vai doer, se não levarmos a sério”, que, inesperadamente, teve um impacto nacional, somando, até à data, mais de 345 mil visualizações. “Eu próprio não fazia ideia de que o vídeo ia ter a visibilidade que teve”, confessa à NiT.

O médico de 39 anos conta-nos que a gravação do vídeo foi impulsionada pelo confronto com duas realidades paralelas: aquilo que se passa no hospital, “que é catastrófico”, e a mensagem que não estava a chegar à cabeça das pessoas.

“Achei que era mesmo importante mostrar às pessoas que a visão in loco da saúde ao dia de hoje, reportando a quarta-feira, a piorar a uma velocidade alucinante, porque conseguimos olhar para as curvas e ver para onde vamos, é de uma preocupação que faz-nos sofrer por aquilo que já é evidente que vai acontecer” começa por dizer à NiT.

E continua: “Para mim já é evidente — e quando digo para mim, acho que para muitas pessoas também —, que vamos estar a gerir uma catástrofe muito maior do que aquilo que foi visto em Itália e em Espanha, na primeira vaga.”

A sua principal preocupação não é a sua saúde do mental e dos companheiros, embora também a tenha.

“A minha preocupação principal é que nós crashando, há muita gente que vai morrer — e isto tem de se explicar com esta frieza. Estou preocupado com as consequências diretas e indiretas nos doentes. Acho que é evidente que já ultrapassamos um ponto nas curvas que, mesmo que tomássemos as medidas todas ao dia de hoje, iríamos contra uma realidade muito, muito triste”, diz Gustavo Carona.

O dia a dia hospitalar em tempos de Covid-19 e a necessidade de comunicar

“Nós vamos fazendo das tripas coração, literalmente, e tentando adaptarmo-nos à realidade. Ou seja, tentamos dar sempre mais um bocadinho”, desabafa à NiT. Ao tentarem fazê-lo, explica, estão a fazer várias coisas pela negativa em relação aos doentes: diminuir um pouco os critérios de qualidade, algo “inevitável”; cometer mais erros, seja nos doentes Covid ou não Covid; e obrigatoriamente ocupar outras áreas do hospital e — “o mais importante disto tudo” — roubar recursos humanos a outras áreas.

“A minha equipa, no início de março, sempre trabalhou anos, anos e anos com oito camas de cuidados intensivos, que é o aconselhável para um hospital com a dimensão do meu. Nestes momento, segundo as informações de ontem [sábado, 31 de outubro], temos 16. E estamos a pensar no que podemos fazer mais, mas estamos a trabalhar já perto de 300 por cento da nossa capacidade e isto tem muitos danos colaterais, nas pessoas, noutras áreas do hospital, nos recursos humanos que roubamos.”

Enquanto cidadão, o médico diz estar obviamente consciente desde o primeiro dia de que isto ia ser um desafio social e económico enorme. Contudo, em termos de saúde, considera importante diminuir o contacto entre pessoas.

“Estamos a ver os hospitais a colapsar enquanto se discute uma aplicação, parece-me infantil”

“É tão simples quanto isto. O número de pessoas com que interagimos no dia a dia exponencia o risco individual e coletivo. É uma questão de probabilidade. Se tivermos com três pessoas num dia ou estivermos com sete, as probabilidades são completamente diferentes. Por isso, temos de fazer todos os esforços possíveis para não estar com pessoas. Não há nenhuma forma bonita para dizer isto. E nas situações que são inevitáveis, estar de máscara e o mais distante possível.”

Gustavo Carona refere a comunicação, que considera “um desafio enorme.” Segundo o médico, a comunicação na primeira vaga foi espontânea: as pessoas reagiram ao medo do que estava a acontecer noutros países, como Itália e Espanha, e tivemos a sorte de vir um pouco atrás deles em termos de acontecimentos, já que fechámos muito precocemente na curva e, consequentemente, tivemos resultados mais animadores.

“Neste momento, o grande desafio é comunicação assertiva, que tem de ser feita, na minha opinião, por pessoas peritas na área da saúde mas que também sejam comunicadores bons. Que expressem sentimentos porque não se pode transmitir uma mensagem de catástrofe com a entoação de que amanhã vai chover. Isto não é uma má notícia, isto é um alerta atenção máximo: ‘Não virem as costas a nada e ouçam com atenção esta mensagem’.”

O médico do hospital de Matosinhos reforça que “as pessoas precisam de perceber a seriedade, profundidade e a emoção que estas mensagens carregam”. E continua: “Porque carregam as vidas de pessoas na visão dos maiores peritos da área da saúde. Não digo isto em substituição da comunicação em geral, é um complemento. Tem de haver pessoas com cargos de responsabilidade e pessoas com posições ou como vozes no terreno.”

A discussão sobre a StayAway Covid e os danos colaterais da pandemia

Sobre a discussão em redor da instalação da StayAway Covid: “Pareceu-me infantil”, diz Gustavo. “Estou de alguma forma a dizer que são infantis algumas das pessoas mais intelectualmente válidas deste País, e que muito admiro e aprendo diariamente sobre outros assuntos. Mas o problema é tão grande, tão grande, e vai ter um impacto tão grande na vida das pessoas, que discutir a obrigatoriedade da aplicação parece-me um detalhe infimamente importante.”

Embora não saiba de que forma a tecnologia nos pode ajudar, parece-lhe impensável que a tecnologia não desempenhe um papel ativo neste cenário.

“Nunca será uma solução, mas é uma ajuda. De que forma? Desconheço, não sou perito. Esta discussão pública para mim foi infantil porque gerou ruído e esfumaçou a mensagem principal. Enquanto se está ali a discutir a constitucionalidade da aplicação, o número de casos, o número de internamentos e o número de internamentos em cuidados intensivos estão a subir a uma velocidade vertiginosa. Estamos a ver os hospitais a colapsar enquanto se discute uma aplicação, parece-me infantil. Vidas de muitas, muitas pessoas versus uma conversa qualquer sobre leis e uma aplicação. Parece-me desproporcional para o momento.”

Já tendo passado pelas maiores zonas de conflitos, confessa à NiT que não é fácil comparar esta pandemia a essas situações, mas de uma coisa tem a certeza: a maior catástrofe num conflito são os danos colaterais. A destruição da saúde, da educação, da justiça, a perceção de segurança. “Os danos colaterais fazem muito mais estragos do que os tiros e as bombas.”

“Só que os danos colaterais só existem porque a guerra existe. As pessoas precisavam mesmo de se concentrar que tudo aquilo que são as consequências indiretas em relação à pandemia, que são imensas e tristíssimas, vão à profundidade da nossa essência, do nosso ser. Mas temos de perceber que não estamos a escolher uma coisa ou outra. Precisamos de controlar a pandemia para diminuir os danos colaterais. Penso que esta é a mensagem mais importante de quem já viu tanta destruição em relação a uma guerra. Aquilo que se passa à volta é o mais grave, mas é explicado pela luta principal — e a luta principal é a pandemia, que condiciona todas as outras sequelas”, acrescenta.

O poder do confinamento

“Neste momento, já me parece demasiado tarde para aquilo que é uma inevitabilidade. Porque as nossas ações em termos de corte de possibilidade de transmissão, ou seja, as medidas restritivas, só têm algum efeito passados duas a três semanas, e os números crescem durante muito tempo”, diz sobre o confinamento.

“Parece-me — e agora estamos na fase do parece-me porque não é a minha especialidade — que as atitudes politicamente são muito difíceis de tomar, mas confinar mais precocemente é mais eficaz. Por dois motivos: se confinarmos precocemente, somos mais eficazes e confinamos menos tempo”, continua.

O problema, explica, é que as decisões políticas são muito baseadas nas emoções e as emoções estão a dizer-nos que é muito difícil confinar outra vez.

“Não é altura para venderem óculos escuros e roupa, os influencers devem usar a sua visibilidade para salvar vidas”

“Eu percebo obviamente esse argumento, não sou imune àquilo que se passa na sociedade à minha volta de todo. Mas acredito piamente que é mais sensato, mais correto, olhando para os dez milhões de portugueses — não estou a olhar para mim. Acho que a atitude que a Irlanda e o País de Gales tiveram de, precocemente, fechar, para que depois pudessem reabrir mais cedo e até, eventualmente, fazer estratégias iô iô, foi o mais sensato. Fechar, controlar os números, baixar os contágios, depois abrir, eventualmente fechar, voltar abrir. É preciso aqui uma frieza para fazer o que é melhor para todos, algo que é muito difícil na política. Foi isso que fez o País fechar na primeira vaga e que não nos fez fechar neste momento.”

“A perceção de que aquilo que se passa nos hospitais não é assim tão mau, quando me parece, em termos de saúde, e como tentei explicar no vídeo com a melhor metáfora possível, é que a decisão não é entre Covids e não Covids.” Gustavo Carona continua: “Se não controlarmos os doentes Covid, as consequências em toda a saúde pública, medicina geral e familiar, todos os serviços de urgência, quase todas as áreas da saúde, são muito grandes. Uma pequena percentagem de pessoas entope completamente os sistemas de saúde.”

A importância de os influencers participarem ativamente na comunicação

O médico aproveita para explicar aos influencers que “eles também são comunicação e que já não é altura para venderem óculos escuros e roupa”.

Para Gustavo Carona, é a altura de estas pessoas usarem a sua visibilidade “para salvar vidas”, uma vez que a comunicação social clássica, sejam sites, jornais ou canais de televisão, têm limitações em termos de alcance, que muitas vezes são complementadas por redes sociais como Facebook, o Instagram ou o YouTube. “Por pessoas que conseguem mexer com a opinião de muita gente”, acrescenta.

“É vital nós trazermos essas pessoas para dentro de uma estratégia informativa e explicar à população que não podemos não querer saber, não estar informadas — e obviamente que a informação tem de ser válida e de qualidade — e este é o momento. Este apelo será válido para muitos meses, que é credibilizar e homogeneizar a qualidade da informação. Temos mesmo de contar com todos para que o ruído, a confusão e a desinformação não ganhe espaço.”

Fonte: NiT

 

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