Edição online quinzenal
 
Quarta-feira 24 de Abril de 2024  
Notícias e Opnião do Concelho de Almeirim de Portugal e do Mundo
 

Eu quero falar com o meu pai

07-08-2020 - António Santos

Nos piores momentos, o meu pai, de 89 anos, ficava tão confuso que achava que estava no forte de Peniche. Eu tentava explicar-lhe que não estava preso, mas era em vão. Ele temia que quando as visitas terminassem houvesse outro interrogatório. Quando as funcionárias do lar passavam, suspeitava que a PIDE-DGS nos estivesse a escutar e eu, a chorar, garantia-lhe que não, papá, que já estás livre, porra, que fizeste o 25 de Abril.

Agora, eu próprio já não sei se o meu pai estava mesmo a alucinar, nem sei mais quem está mais demente, se o meu pai se os que se dizem sanos. É que a demência às vezes é cruel, mas a crueldade é sempre demente: quando o meu pai testou positivo para a COVID-19, o lar decidiu que a família não pode contactá-lo. Nem por telefone nem via internet. Nem quando o meu pai foi preso político, encarcerado por presidir ao Sindicato dos Jornalistas, esteve completamente incomunicado. Até os fascistas permitiam que os presos, de vez em quando, falassem com a família. A PIDE fez-lhe a estátua, mas não se lembrou desta tortura.

Não consigo imaginar o sofrimento dele: confuso, fechado sozinho num quarto, 24 horas por dia, sem poder falar com a mulher nem com os filhos. Somar 89 anos e um estado de saúde precário à COVID-19 não dá expectativas animadoras. Explicámos ao CBESQ, um lar para os lados de Queluz onde o meu pai está institucionalizado, que se nos privarem do direito a falar com ele enquanto estiver infectado, podemos nunca mais poder falar com ele. Insistimos que não há quaisquer razões sanitárias para não introduzir permanentemente um tablet no quarto dele, mas a direcção do lar não concorda. Parece que o CBESQ não segue só as recomendações da DGS - Direcção-Geral de Saúde, que naturalmente não diz nada sobre os infectados com COVID-19 não poderem usar telefones, mas também cumpre devotamente as recomendações da outra DGS, a velha Direcção Geral de Segurança.

Em Portugal ninguém pode ser privado no direito a contactar a família. Nem aos perpetradores dos crimes mais hediondos é negada essa chamada telefónica. Mas dentro de incontáveis lares de idosos deste país não impera a lei da república, mas a lei do mais forte. O que a direcção decide é lei: podem transformar recomendações em obrigações; podem virar do avesso direitos e chamar-lhes proibições; podem até mudar de opinião arbitrariamente e dizer o contrário e o seu oposto... Podem fazer quase tudo, que ninguém se atreve a protestar porque, afinal de contas, são eles que têm os nossos familiares como reféns.

O CBESQ não quer saber se a DGS, na informação n.º 016/2020, no ponto 5.2.1, diz que «a área de “isolamento” deve ter ventilação natural, ou sistema de ventilação mecânica, e possuir revestimentos lisos e laváveis (ex. não deve possuir tapetes, alcatifa ou cortinados). Esta área deverá estar equipada com: telefone». O CBESQ não quer saber se a DGS, na informação n.º 011/20, no ponto 7, diz que «As ERPI, UCCI da RNCCI e demais estabelecimentos de apoio social devem incentivar e garantir os meios para que os utentes possam comunicar com os familiares e amigos através de vídeo chamada ou telefone». O CBESQ não quer saber se a DGS através da orientação n.º 009/20 diz, no ponto 2, alínea A, que «as instituições devem garantir os meios para que os residentes possam comunicar com os familiares, nomeadamente videochamada ou telefone».

O Estado retirou-se das suas obrigações sociais com a terceira idade, lavou as mãos como Pilatos e passou a bola a milhares de pequenos tiranetes privados, que dão a cruz a beijar aos utentes com a mesma facilidade que proíbem os familiares de se aproximarem mais do que quatro metros sobre uma piscina de lixívia. E este não é um problema do meu pai, é um problema de milhares de idosos sequestrados em lares a que a COVID-19 veio partir a espinha. As faltas já lá estavam todas: de recursos humanos, de salários dignos, de formação, de licenciamento, de transparência, de higiene, de estímulo intelectual, de qualidade. A COVID só veio dar o golpe de misericórdia.

A Direcção do CBESQ tão rapidamente diz que não podemos contactar o meu pai por falta de recursos humanos como garante que é por razões sanitárias, para sua própria protecção. Vá se lá saber porquê. No lar do meu pai, faltam trabalhadores para garantir que todos os utentes comem e bebem água. O meu pai já esteve tão desidratado que precisou de soro para não morrer. Matam-nos de tristeza, matam-nos à fome e à sede e matam-nos de confusão. Mas de COVID, não.

Hoje participei à PSP que os direitos humanos do meu pai estão a ser atropelados. Citava ao agente que me atendeu o Artigo 72.º da Constituição que diz que «As pessoas idosas têm direito (…) a condições de habitação e convívio familiar que respeitem a sua autonomia pessoal e evitem e superem o isolamento ou a marginalização social». O agente, educadíssimo, respondeu-me com bonomia que «agora estamos em Estado de Calamidade» e acrescentou: «o seu pai tem COVID...».

Há quem queira que pensemos que o Estado de Calamidade suspendeu a Constituição. Há quem queira aproveitar o ensejo para matar direitos. Há quem queira uma DGS (a da Segurança, não a da Saúde) em cada esquina. Há quem queira, à boleia da pandemia, fazer-nos voltar para o dia 24 de Abril de 1974. Há quem queira o medo. Há quem queira o obscurantismo. Há quem queira a tirania. Mas eu quero falar com o meu pai.

Fonte: Manifesto74

 

Subscreva a nossa News Letter
CONTACTOS
COLABORADORES
 
Eduardo Milheiro
Coordenador
Marta Milheiro
   
© O Notícias de Almeirim : All rights reserved - Site optimizado para 1024x768 e Internet Explorer 5.0 ou superior e Google Chrome