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DOSSIERS
 
A herança árabe

20-09-2013

A decadência do mundo romano marca de certa forma, o início do mundo medieval. Do momento entre a entrada dos povos bárbaros na Península até à invasão árabe, contam-se cerca de 300 anos e foi o período em que se dá o

  “(…) lento processo de desagregação das estruturas urbanas criadas pelos Romanos e de desmantelamento do sistema administrativo criado também por eles a partir das cidades. (…) Apesar de todo o seu prestígio, as instituições romanas não estavam adaptadas aos novos reinos. Foi necessário criar formas diferentes de organizar a sociedade e de exercer o poder político, cultural, social e económico.” (Torres, 1992: 337)

Nos princípios do século VIII, o poder muçulmano crescia no noroeste africano, na “lógica e necessária extensão da conquista da África Setentrional.” (Kennedy, 1999: 21) Nesta perspectiva, aproveitando o estado de decomposição da monarquia visigótica, os árabes (que incluem sírios, persas, egípcios e berberes), atravessaram o Estreito de Gibraltar, vindos das mais variadas partes, conquistaram e penetraram profundamente quase toda a Península Ibérica em 711. Tornaram-se senhores de um vasto território com cerca de 600 000 km 2, conquistado desde o sul para norte e, uma vez chegados ao centro de Espanha, expandiram-se para ocidente, apoderando-se do território que hoje é Portugal. Em 715, a ocupação estava praticamente concluída. Os árabes não conseguiram, no entanto, dominar um pequeno grupo de cristãos das Astúrias, de onde iria partir a Reconquista. Os séculos que mediaram até à completa expulsão dos árabes, que se deu em 1492, foram dominados por uma longa luta armada. Os cristãos venceram o mundo islâmico devido à divisão interna deste, patente na fragmentação política que tornava frequentes as guerras civis árabes.

Os primeiros anos de dominação árabe na Península couberam aos Califas do Oriente formando-se mais tarde o califado Omíada (756-1031) - Período dos reis dissidentes. Assim, devido ao desmembramento do império do Islão e devido às lutas sanguinárias, que no Oriente começaram a travar-se entre as famílias rivais das duas poderosas seitas muçulmanas, Omíadas e Abassíadas, determinou-se a fuga para a Ibéria do Omíada Abderramão III, que logo foi reconhecido como soberano, pelo mundo árabe peninsular. Consolidada a conquista da Península e o domínio das cidades, foi fundada a dinastia Omíada, que a partir de Córdova levou a civilização do Al-Andaluz - nome dado à parte da Península Ibérica dominada pelos muçulmanos  - a um elevado prestígio (Torres , 1992: 363).

A ocupação islâmica da alcáçova de Santarém (714) atestada nomeadamente pelos silos subterrâneos ali encontrados (Arruda [et al.], 2002: 81), vêm confirmar a existência de habitações daquele período. Esta ocupação insere-se na expansão islâmica do Vale do Tejo e deve ser nesta perspectiva que devemos considerar a herança árabe no concelho de Almeirim. A propósito da exposição realizada no Museu Nacional de Arqueologia em 2002, intitulada “De Scallabis a Santarém”, verificou-se que

 
“Tanto na Alcáçova, que se mantinha ocupada, como na área do planalto, as evidências arqueológicas da presença muçulmana resumem-se a estruturas escavadas na rocha (…). Continua, pois, a depender-se de outro tipo de documentação para reconstituir a imagem da cidade medieval.” (Arruda [et al.], 2002: 70).

Ver a ocupação do Vale do Tejo de forma abrangente, tem sido, na grande maioria das vezes a opção mais sensata, pois a sua ocupação foi feita de forma mais ou menos concertada, o que justifica partir-se de um enquadramento geral e que pode, em alguns casos ser atestado através de particularismos arqueológicos.

O domínio muçulmano pode também ser entendido como um reflexo da ocupação que a capital de distrito a que pertence o concelho de Almeirim teve dentro de um quadro muito mais complexo do que aqui será possível tratar. Terá sido no início do século VIII que a ocupação muçulmana, durante a qual a capital era denominada Shantarin, cimenta a ali a sua vocação comercial, agrícola e administrativa.(1) Por outro lado,

 
“A relação intrínseca entre a exploração agrícola de elevado rendimento e as obras hidráulicas que a viabilizassem, em compromisso com o regime do Tejo, ‘poderoso mas incontornável’ foi uma das mais importantes heranças culturais da civilização islâmica no al-Andaluz” (Custódio, 2002: 16)

As línguas islâmicas deixam marcas indeléveis na cultura portuguesa, conforme referido por Jorge Custódio, existiu todo um conjunto de conceitos assumidamente de origem árabe. O topónimo Al-Meirim está já definido desde o século X d.C. (Custódio, 2008: 15) e terá tido origem no conceito de paúl, pelo facto de se localizar num zona de lezíria facilmente inundável o que proporcionava aos terrenos uma excepcional fertilidade “(…) porque as cheias ali deixavam o lodo e os nateiros, para as adubarem como ninguém, proporcionando-lhes uma ratio invulgar só conhecida no Nilo(…) (Custódio, 2002: 16).

Os próprios servos agrícolas acabaram por tornar-se numa espécie de arrendatários e, de alguma forma, gozando até de certa independência. Houve, com a chegada do Islão, de forma geral, uma melhoria efectiva e significativa da qualidade de vida das populações Ibéricas. Como aspecto importante da cultura árabe tenhamos em conta que, o Islão, civilização urbana por excelência, irá ter na arquitectura e na caligrafia as suas formas artísticas supremas. Os primeiros anos de domínio muçulmano foram pois, de calma, conformação e mesmo de estabilização, por parte da população autóctone do ocidente peninsular, para com os seus novos senhores, após a desagregação final do Estado Visigótico. Sobre este aspecto será interessante abrirmos aqui um pequeno parêntesis para observarmos o que, por exemplo, acerca da cultura da oliveira, nos diz Orlando Ribeiro (1991):

  “Da época muçulmana ficaram muitos testemunhos no vocabulário e na toponímia: zambujo, zambujeiro, zambujal, estes dois também nomes de lugar, como Azambuja, azeite, Azeitão (o olival), azeitona, safra, almanjarra, fanga (medida de capacidade para a azeitona), seira (?), almotolia (pequena vasilha de metal de boca estreita apenas utilizada para o azeite). Muitas palavras da mesma origem relativas ao pastoreio revelam talvez o nomadismo atávico dos muçulmanos; mas árabes e berberes também eram sedentários, as suas cidades, maiores e mais prósperas do que as cristãs, possuíam uma cintura de culturas mimosas, onde a oliveira tinha lugar; os berberes montanheiros eram mestres na construção de socalcos e na arboricultura. Os livros árabes peninsulares de agricultura referem tanto a propagação espontânea pelo caroço como a plantação; num ano de grande seca transplantaram-se árvores da África para Península.” (p. 109)

As fortificações que, anteriormente, durante o período romano e visigótico, eram apenas locais de protecção dos povoados e a base para o lançamento de ofensivas e controlo das vias de comunicação, passaram, durante o domínio árabe a ser também locais tácticos de controlo e defesa do território. A localização da alcáçova era cuidadosamente escolhida, em locais elevados, de forma a dominar um vasto território circundante, possibilitando a sua defesa e, simultaneamente, servindo de base para o movimento de saída e recolha das hostes, que frequentemente partiam em incursões guerreiras. O castelo cristão foi inspirar-se, de forma directa e imediata, nessas fortificações árabes e o próprio termo alcáçova (al-kasbah) permaneceu na língua portuguesa, passando a denominar o reduto principal da fortificação.

Importante para a história do concelho de Almeirim é a sua proximidade à capital de distrito. A antiga povoação de Santarém, denominada de Shantarin foi uma dessas cidades fortificadas, constituindo, juntamente com Lisboa, um dos eixos fundamentais do mundo árabe, sendo que naquele caso a Medina nasceu no Alfange, junto ao rio e a sua cintura de muralhas abrigou os primeiros núcleos de pescadores e embarcadiços. Devido ao escarpado das encostas, nunca chegou, como no caso de Lisboa, a envolver a Alcáçova no mesmo espaço de protecção. Por outro lado, os vestígios materiais da presença árabe no concelho de Almeirim traduziram-se em descobertas avulsas, como moedas do período de ocupação muçulmana, sendo mais um motivo para que a herança árabe seja entendida antes num quadro muito mais complexo e vasto, noutras formas que não no domínio arqueológico, mas antes do ponto de vista tecnológico, administrativo e social para os quais fomos sugerindo bibliografia.

(1) Vd. Mattoso [et al.], 1992: 363-437.

Azulejo hispano-árabe

Datação provável: séc. XVI (1512-1514).  

N.º Inventário: 1284

Museu Municipal de Almeirim

Milheiro*, Marta (2013) Contributos para uma candidatura à Rede Portuguesa de Museus – o caso do Museu Municipal de Almeirim (trabalho de Projecto para obtenção do grau de Mestre em Museologia).

*Licenciada em História da Arte e Mestre em Museologia pela FCSH - Universidade Nova de Lisboa.

 

 

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