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Pedro Montes, economista: “Há que romper com o euro para garantir a saída da crise”
Autor: Alexandre Carrodéguas

03-01-2014

Alexandre Carrodéguas para o Diário Liberdade

Economista de longa trajectória profissional no Serviço de Estudos do Banco de Espanha (desde 1969), Pedro Montes tem idêntico percurso de compromisso com a esquerda social do Estado espanhol.

Autor de numerosos estudos e livros divulgativos sobre o neoliberalismo e a história do euro, não duvida na receita necessária para poder enfrentar a crise com garantias para os povos que a padecem: propõe a imediata saída do euro e o desmantelamento do actual projecto de União Europeia, que considera irreversivelmente fracassada.

O companheiro Alexandre Carrodéguas teve ocasião de entrevistar Pedro Montes para os leitores e leitoras do Diário Liberdade, durante umas jornadas decorridas recentemente em Barcelona.

Este é o resultado da entrevista, que recomendamos ler como munição teórica para a luta social por uma saída revolucionária à crise capitalista.

Diário Liberdade - Podia falar-nos um bocado da relação existente entre o euro e a crise?

Pedro Montes – Uma crise desta natureza e destas dimensões tem causas complexas, mas eu já escrevi num artigo sobre a crise que, em minha opinião, a chave desta crise é precisamente o euro. O euro é fundamental na hora de explicar a crise, sem nenhuma dúvida.

Isto é assim num duplo sentido: primeiro, porque com o euro se originaram uns enormes desequilíbrios na chamada balança de pagamentos por “conta corrente” entre umas economias e outras. Uma vez que já não havia tipos de cambio para que, tanto as economias mais fortes como as mais fracas, pudessem depreciar as suas moedas, isso resultou nuns desequilíbrios exteriores crescentes. Daí que tenhamos atingido défices, em estados como o espanhol ou Grécia, de entre 10 e 15% em relação ao PIB.

Essas magnitudes nunca foram reconhecidas antes na história. O euro possibilitou e facilitou tais desequilíbrios, mas ao mesmo tempo também facilitou uma grande expansão financeira, porque permitiu que qualquer país fosse financiado, levando a pensar que os défices podiam crescer sem problema. Acreditava-se que os mercados iriam assumir essas dívidas de cada Estado sem problemas, mas isso era falso. Na medida que os estados aumentavam enormemente os seus défices, acumularem dívidas que acabarão por emergir como verdadeiros problemas para esses estados.

Entretanto, aconteceu que também rebentou a crise financeira internacional em Setembro de 2008, com a falência do banco Lehman Brothers. Aí os mercados se fecham e começa a comprovar-se quem está endividado com quem, o valor da dívida, a qualidade, se pode ser paga ou não... Então descobre-se que a Europa é uma das regiões do mundo com maiores desequilíbrios e com maiores dívidas entre estados.

A partir daí, entramos na crise do euro, porque essa moeda não permitiu um desenvolvimento equilibrado das diferentes economias, mas sim um endividamento colossal de todas elas. Para além doutros factores, o euro já criou as condições para uma grande crise na Europa.

DL – Era a criação do euro uma proposta utópica?

Pedro - Eu não diria utópica, porque de facto o euro foi construído, mas sim foi uma construção absolutamente errada, em dois sentidos. Para já, não havia bases reais sensatas para a criação de uma moeda única entre estados tão desiguais como os que inicialmente formaram a união monetária. Posteriormente, o problema tem vindo a agravar-se porque o euro se estendeu até os 17 estados actuais, sem haver bases económicas para tal.

De facto, as famosas condições de convergência, que supunham um indicador sobre que estados podiam aderir ou não ao euro desde os inícios, não se cumpriram (por exemplo, a Bélgica devia cumprir com um máximo de dívida de 60% aquando da sua adesão, mas tinha 120% do PIB).

Ao mesmo tempo que não se cumpriam as condições mínimas, sabia-se que tinha já havido uma crise do sistema monetário europeu poucos anos antes, em 93-94, em que o acordo de manter uma certa estabilidade monetária saltou pelos ares devido às importantes diferenças económicas entre os diferentes estados. Todo isto tornava muito ousado tentar criar uma moeda única e permanente, fixando mesmo os tipos de câmbio.

DL – Podemos dizer que foi uma fugida para a frente?

Pedro - Podemos, sim. Deviam ter parado para reflectir sobre “aonde é que vamos” e “quem é que vai”, já que, contra as reservas anteriores, se decidiu que todos os estados poderiam aderir no momento da criação da moeda única.

Por outra parte, está o aspecto político-ideológico. Os diferentes estados, com a fixação de tipos de câmbio rígidos e inamovíveis, vêem surgir uma concorrência entre todos eles que é descarregada sobre as condições laborais, os salários, os impostos, os serviços públicos (salários indirectos dos trabalhadores e trabalhadoras), as pensões, etc.

Não sei é como a esquerda foi tão estúpida para se comprometer com semelhante processo de criação do euro. Era claro que estávamos a entregar tantas armas ao capital e à burguesia que a esquerda deveu ter visto que aquilo não era muito sensato. Porém, a euforia europeísta que nos invadiu durante muito tempo levou a que no Estado espanhol muito pouca gente se opusesse à criação do euro.

DL – Quem era então que tinha tanto interesse em criar o euro?

Pedro - As burguesias europeias, para sustentarem a concorrência. Ao capital internacional também vinha bem um espaço e uma moeda única, para fazer os seus cálculos e os seus negócios livremente num âmbito territorial muito mais amplo.

DL – Então, como se entende a posição dos sindicatos maioritários espanhóis -CCOO e UGT- em favor de Maastricht, pedindo um 'sim crítico' no referendo da Constituição europeia...?

Pedro - Foi uma fugida, uma cobardia na hora de se definir num problema que iria ser essencial no futuro. Deixaram-se arrastar, como a maioria da esquerda, pensando que era um grande avanço, sem pensar nas consequências terríveis a nível económico e ideológico. A partir daí ficámos nas mãos da burguesia para que fizessem o que quisessem com o argumento de que havia que ser “competitivo”.

Nessa lógica, nem sequer os trabalhadores podiam lutar, porque as suas vitórias eram prejudiciais na medida que o seu Estado perdia competitividade.

DL – Pode-se falar de um complexo em torno da Europa modernizadora, que nos permitiria entrar no “clube dos ricos” e por aí diante?

Pedro - Sem dúvida, venderam-nos uma Europa que não existia e o Estado espanhol comportou-se desde 1986, aquando da entrada no Mercado Comum, como “aluno avantajado”, querendo ser admitido, assimilado, e mostrando um grande “desejo europeísta”. Porém, todo era um pouco falso, já que a integração europeia não foi real, ficando claro que a união monetária não significava uma união fiscal, o que é contraditório e evitou a intervenção do poder público que não é comparável com a que representam os orçamentos comunitários.

As disfunções entre zonas mais e menos desenvolvidas corrigem-se nos estados através do setor público, mas no âmbito europeu não é assim, porque se mantêm os orçamentos estatais desligados, o que permite que os grandes estados como a Alemanha se reforcem sem qualquer compensação dos desequilíbrios em favor das zonas menos favorecidas.

DL – Que opinião tem do desmantelamento dos sectores produtivos básicos (naval, agricultura...) que se verificou em países como a Galiza desde a sua incorporação forçada à União Europeia?

Pedro - Não conheço especificamente o caso galego, mas as normas de concorrência europeias, com as suas quotas, devem sem dúvida ter um efeito muito negativo na economia galega. No caso da indústria naval, a crise actual parte já da dos anos 70, mas a invasão de mercadorias, a dificuldade para exportar e as normas comunitárias significam destruição do tecido produtivo interno.

DL – Como avalia o papel dos salários no desenvolvimento da crise?

Pedro - O problema dos salários parte de que a burguesia recebeu armas para poder controlá-los directamente mais que nunca. Os próprios sindicatos têm participado com os pactos sociais para esse controlo burguês dos salários. A partir de Maastricht, começa-se a falar das condições de convergência, que sempre incluíam a “moderação salarial”, com a escusa da competitividade, mas o mais grave véu com a crise, quando se criou o mito de que “vivíamos por cima das nossas possibilidades” e devia haver um ajuste interno.

Foi Krugman [Nobel de Economia 2008] quem propôs que, se não podia fazer um ajuste externo através da balança de pagamentos, devia havê-lo interno, através da revisão salarial, aplicada no caso espanhol primeiro pelo PSOE e depois pelo PP, até hoje, de maneira terrorífica. A mais recente reforma laboral tinha esse objectivo preferencial, aumentando as desigualdades na distribuição da renda e sem afectar positivamente a resolução da crise.

DL – E a expansão do crédito, até que ponto influi na actual crise?

Pedro - Um papel enorme. Os salários som essenciais em qualquer economia, porque reflectem a capacidade de compra da população, supondo 60 ou 70% da procura de um país, mas claro, como existe uma guerra contra os salários, a austeridade produz uma restrição da procura.

Daí parte a chamada financeirização: “Não dou salário aos trabalhadores e trabalhadoras, mas sim crédito”. Essa possibilidade de compra concedida através do crédito acaba degenerando ao ficar em evidência que não é possível pagar esses créditos, o que no âmbito da construção se vê no desenvolvimento da chamada bolha imobiliária.

O crédito é uma das sequelas do neoliberalismo, junto à livre circulação de capitais e a desregulação económica, que provocam a crise financeira. Isso situa o próprio neoliberalismo como causador da crise mundial actual. Não sei se todo isso está nos genes do neoliberalismo, mas de facto foi assim que actuou.

DL – Podemos falar também de uma fugida para a frente em relação à crise dos 70?

Pedro - Sim. Mandel fala dos ciclos longos da economia e eu concordo nisso. Houve um ciclo longo de expansão, que partiu do fim da II Guerra Mundial e durou até 1972-73, em que se produz uma mudança na tendência económica mundial, que ainda não acabou. Depois disso, não voltou a haver expansão comparável às existentes anteriormente, nem sequer no caso espanhol, que até 2008 teve taxas de crescimento de 2,5%. Nada comparável às existentes naquele longo período de expansão, que no Estado espanhol chegou a registar 6 e 7% de crescimento económico anual e cumulativo.

DL – Então continuamos na crise dos 70?

Pedro - O período histórico longo em que estamos é recessivo, mas nos últimos 40 anos aconteceram muitas coisas e agora realmente estamos num período especialmente grave.

DL – Concorda na visão marxista que explica as crises como resultado da sobre produção?

Pedro - Concordo, sim. O capitalismo não produz para satisfazer necessidades e sim para gerar lucro. Isso provoca contradições diversas, como a sobre produção ou o sub-consumo, relacionado com a financeirização de que antes falamos.

DL – Porque a esquerda tem que lutar por abandonar o euro?

Pedro - Porque é uma condena imposta pelo capitalismo e se quisermos começar a sair da crise, deve recuperar-se uma certa capacidade de concorrência, reabilitando a própria moeda, desvalorizando-a em relação ao euro actual e melhorando assim a relação entre importação e exportação.

Além disso, os países endividados perdem liquidez, ao carecerem de excedentes na balança de pagamento, que é negativa, e de financiamento exterior. A economia fica deprimida e com sub-consumo devido à falta de liquidez. A liquidez cria-se com a emissão de moeda por cada Estado, pondo fim aos cortes e favorecendo o consumo.

Agora o tecido produtivo está destruir-se por essa falta de liquidez.

DL – Mas alguns economistas “de esquerda” dizem que abandonar agora o euro seria como saltar de um avião em marcha...

Pedro - Isso é engraçado, sim... o problema é que o avião não está em marcha, o avião está próximo de colidir. Devemos saltar, se houver ocasião, antes da colisão. Não sei porque se vê como impossível desmontar algo que existe há 15 anos, depois de todo o que já tem acontecido na história nas últimas décadas, a começar pela queda da União Soviética, por exemplo.

Não serve dizer que “Europa ou o caos”, porque a Europa já é o caos e a Europa que propõem é impossível de construir.

DL – Acha que a esquerda devia começar a defender a saída do euro em lugar de se limitar a dizer que há que crescer e criar emprego?

Pedro - Absolutamente. Crescer e criar emprego é a solução final, mas há que incidir nos problemas reais que impedem atingi-la. Surpreende que, estando claro que não há solução no quadro do euro, que leva os estados à Idade Média, porque não se pode desmontar esta Europa e começar a construir uma diferente? É preciso recuperar a soberania económica dos estados: taxas alfandegárias, política fiscal, controlo dos capitais, setor público industrial, política monetária... as sociedades estão atadas e a esquerda não está a reivindicar a recuperação de todos esses recursos por parte de cada sociedade particular. Não se entende essa atitude.

O continuísmo não vai servir, isto é uma ruptura e, digam o que disserem, façam o que fizerem, a Europa do euro não se vai sustentar. Estamos agora, no Estado espanhol, nos 6 milhões de desempregados e desempregadas. Alguém pensa que se vai criar emprego nos próximos 2, 3 ou 4 anos? Vamos continuar até os 7 milhões de pessoas no desemprego? Esta é a normalidade que nos propõem?

Essa Europa não é viável e não existe já projecto de construção europeia. Deve-se romper o euro e que cada sociedade recupere os seus instrumentos para enfrentar a crise de maneira efectiva e soberana.

 

 

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