18-09-2020
O regime de comércio internacional que temos agora, expresso nas regras da Organização Mundial do Comércio e de outros acordos, não é deste mundo. Ele foi projectado para um mundo de carros, aço e têxteis; não para um mundo de dados, software e inteligência artificial. Já sob forte pressão devido à ascensão da China e à reacção contra a hiper-globalização, é totalmente inadequado enfrentar os três principais desafios que estas novas tecnologias representam.
Em primeiro lugar, existe a geopolítica e a segurança nacional. As tecnologias digitais permitem que as potências estrangeiras acedam ilegalmente às redes industriais, realizem ciber-espionagem e manipulem as redes sociais. A Rússia foi acusada de interferir nas eleições nos Estados Unidos e noutros países ocidentais através de sites de notícias falsas e da manipulação das redes sociais. O governo dos Estados Unidos reprimiu a gigante chinesa Huawei devido ao receio de que as ligações da empresa com o governo chinês tornem os seus equipamentos de telecomunicações uma ameaça à segurança.
Em segundo lugar, existem preocupações em relação à privacidade individual. As plataformas da Internet são capazes de recolher grandes quantidades de dados sobre o que as pessoas fazem online e offline, e alguns países têm regras mais rígidas do que outros para regulamentar o que podem fazer com isso. A União Europeia, por exemplo, promulgou multas para as empresas que não protegem os dados dos residentes na UE.
Em terceiro lugar, existe a economia. As novas tecnologias proporcionam uma vantagem competitiva às grandes empresas que podem acumular um enorme poder no mercado global. Economias de escala, de âmbito e de efeitos de rede produzem resultados em que há um único e absoluto vencedor, e as políticas mercantilistas e outras práticas governamentais podem fazer com que algumas empresas tenham o que parece uma vantagem injusta. Por exemplo, a vigilância estatal permitiu que as empresas chinesas acumulassem grandes quantidades de dados, o que por sua vez lhes permitiu dominar o mercado de reconhecimento facial global.
Uma resposta comum a estes desafios é pedir uma maior coordenação internacional e regras globais. A cooperação reguladora transnacional e as políticas antitruste poderiam produzir novos padrões e mecanismos de aplicação. Mesmo quando uma abordagem verdadeiramente mundial não é possível – porque os países autoritários e democráticos têm profundas divergências sobre privacidade, por exemplo – ainda é possível para as democracias cooperarem entre si e desenvolverem regras conjuntas.
As vantagens das regras comuns são claras. Na sua ausência, práticas como localização de dados, requisitos de nuvens locais e discriminação a favor de campeões nacionais criam ineficiências económicas na medida em que segmentam os mercados nacionais. Elas reduzem os ganhos provenientes do comércio e impedem as empresas de colher os benefícios de escala. E os governos enfrentam a constante ameaça de as suas regulamentações serem prejudicadas por empresas que operem em jurisdições com regras mais permissivas.
Mas num mundo onde os países têm preferências diferentes, as regras mundiais – mesmo quando são viáveis – são ineficientes num sentido mais amplo. Qualquer ordem mundial tem de equilibrar os ganhos do comércio (maximizados quando os regulamentos são harmonizados) com os ganhos da diversidade reguladora (maximizados quando cada governo nacional é inteiramente livre para fazer o que quiser). Se a hiper-globalização já se mostrou frágil, é em parte porque os governantes deram prioridade aos ganhos do comércio em detrimento dos benefícios da diversidade reguladora. Este erro não deveria ser repetido com as novas tecnologias.
Na verdade, os princípios que deveriam guiar o nosso pensamento em matéria de novas tecnologias não são diferentes daqueles para os domínios tradicionais. Os países podem criar os seus próprios padrões reguladores e definir as suas próprias exigências de segurança nacional. Eles podem fazer o que for necessário para defender estes padrões e as respectivas seguranças nacionais, inclusive por meio de restrições ao comércio e ao investimento. Mas eles não têm o direito de internacionalizar os seus padrões e tentar impor os seus regulamentos a outros países.
Tenha em consideração como esses princípios se aplicariam à Huawei. O governo dos EUA impediu a Huawei de adquirir empresas americanas, restringiu as suas operações nos EUA, lançou processos judiciais contra a sua administração principal, pressionou governos estrangeiros para não trabalharem com ela e, mais recentemente, proibiu as empresas americanas de venderem chips para a cadeia de fornecimento da Huawei em qualquer lugar do mundo.
Há poucos indícios de que a Huawei se tenha envolvido na espionagem em nome do governo chinês. Mas isso não significa que não o fará no futuro. Especialistas técnicos ocidentais que examinaram o código da Huawei não conseguiram excluir a possibilidade. A opacidade das práticas empresariais na China poderia muito bem obscurecer os vínculos da Huawei com o governo chinês.
Nestas circunstâncias, há um argumento de segurança nacional plausível para os EUA – ou qualquer outro país – restringirem as operações da Huawei dentro das suas próprias fronteiras. Outros países, incluindo a China, não estão em posição de questionar esta decisão.
A proibição de exportação das empresas americanas, no entanto, é mais difícil de justificar por motivos de segurança nacional do que a proibição das operações da Huawei nos Estados Unidos. Se as operações da Huawei em países terceiros representam um risco de segurança para esses países, os seus governos estão na melhor posição para avaliar os riscos e decidir se uma paralisação é apropriada.
Além disso, a proibição dos EUA confronta outros países com graves repercussões económicas. Cria efeitos adversos significativos para empresas nacionais de telecomunicações como: BT, Deutsche Telekom, Swisscom e outras, em nada menos que 170 países que dependem dos kits e do hardware da Huawei. Talvez os mais atingidos sejam os países pobres de África, que dependem esmagadoramente dos equipamentos mais baratos da empresa.
Resumindo, os EUA são livres para fecharem o seu mercado à Huawei. Mas os esforços dos EUA para internacionalizarem a sua repressão nacional carecem de legitimidade.
O caso da Huawei é o prenúncio de um mundo no qual a segurança nacional, a privacidade e a economia interagirão de formas complicadas. A governação mundial e o multilateralismo fracassarão muitas vezes, por boas e más razões. O melhor que podemos esperar é uma multiplicidade reguladora, baseada em regras básicas claras que ajudem a capacitar os países a defender os seus interesses nacionais essenciais sem exportar os seus problemas para os outros. Ou projectamos nós mesmos essa multiplicidade ou acabaremos, quer queiramos quer não, com uma versão confusa, menos eficiente e mais perigosa.
DANI RODRIK