25-10-2019
Os planos para a “stablecoin” (NdT: “criptomoeda estável”, uma criptomoeda concebida de forma a minimizar a volatilidade do seu preço) proposta pelo Facebook, a Libra, parecem estar a desfazer-se com o afastamento da PayPal, Visa, Mastercard, Stripe, eBay, e Mercado Pago como potenciais patrocinadores. Isto não admira, dada a consciência crescente das potenciais consequências adversas da Libra. Se oferecer anonimato aos seus utilizadores, a Libra tornar-se-á uma plataforma para a evasão fiscal, o branqueamento de capitais e o financiamento do terrorismo. Se, por outro lado, as suas cláusulas de privacidade forem negligentes, a Libra concederá ao Facebook acesso aos detalhes financeiros mais íntimos dos seus utilizadores.
Depois, existem os perigos que a Libra representa para a estabilidade económica e financeira. Embora a stablecoin do Facebook venha a ser sustentada por uma carteira de “activos de volatilidade reduzida”, qualquer pessoa que tenha vivido a crise financeira global de 2008 saberá que a volatilidade reduzida é mais um estado de espírito do que um atributo intrínseco de um activo. Se o preço das obrigações na carteira de reserva descer em resposta a um aumento inesperado das taxas de juro, por exemplo, essas obrigações poderão tornar-se inadequadas para resgatar todas as Libras em circulação. Nesse momento, a reserva será sujeita ao equivalente a uma corrida aos depósitos. E como a Libra funciona como um comité monetário, não existirá prestamista de última instância.
A Libra poderá também ultrapassar a capacidade estabilizadora das políticas monetárias e de regulação. Se os residentes de um país deixarem de usar a sua moeda nacional, as políticas do banco central para definição das taxas de juro serão distorcidas. Para compreender as consequências, basta olhar para a longa e infeliz história de dolarização financeira da Argentina.
Finalmente, os governos que usam controlos para regulamentação dos fluxos de capitais descobrirão que será mais fácil evadir-lhes. As suas economias serão completamente expostas às fraquezas dos mercados financeiros globais. Isto causará uma “perturbação” ainda maior.
A implementação da Libra necessitará da aprovação das autoridades reguladoras. Os seus promotores, que proclamam benefícios sociais significativos, defendem que merece ser aprovada. A Libra reduzirá o custo dos pagamentos transfronteiriços. Reduzirá as despesas com transferências. Disponibilizará serviços financeiros às multidões não-bancarizadas.
Embora estes argumentos a favor da Libra não sejam falsos, são supérfluos. O custo dos pagamentos transfronteiriços já está a cair. A Ripple, uma empresa de São Francisco, usa tecnologia de registos distribuídos e uma criptomoeda própria para facilitar transferências entre bancos comerciais, a uma pequena fracção do seu custo anterior.
Como a Ripple colabora com bancos comerciais sujeitos a regras de “conheça o seu cliente” e a outros requisitos regulamentares, a sua tecnologia de pagamentos não coloca os mesmos problemas que a Libra. Bancos como o Santander já usam esta tecnologia para ligar a Europa aos Estados Unidos. Estão agora posicionados para ligar os EUA à América Latina.
A Sociedade para as Telecomunicações Financeiras Interbancárias Globais (NdT: SWIFT – Society for Worldwide Interbank Financial Telecommunication), através da qual são tradicionalmente efectuadas as transferências interbancárias, não está a enfrentar este desafio de braços cruzados. Testou um sistema, o “SWIFT gpi Instant,” para transferir fundos entre bancos na América do Norte, Europa e Japão, liquidando pagamentos em apenas 13 segundos. O SWIFT gpi Instant é suportado pelos recém-instalados sistemas de pagamento instantâneo e permanente, como as Transferências Rápidas e Seguras de Singapura (FAST) e a Liquidação Instantânea de Pagamentos TARGET (TIPS) do Banco Central Europeu. Quando a Reserva Federal implementar um sistema de pagamentos e liquidações permanente e em tempo real em 2023 ou 2024, esta rede será ainda mais reforçada.
Embora o piloto da SWIFT não utilize a tecnologia de registos distribuídos, que confirma as transacções através do registo dos seus detalhes em vários locais ao mesmo tempo, outras iniciativas fazem-no. Por exemplo, o BCE e o Banco do Japão têm estado a explorar a utilização desta tecnologia para pagamentos nacionais e transfronteiriços no seu “Projecto Stella” (não confundir com o jogo vídeo com o mesmo nome).
Além disso, já houve progressos consideráveis na resolução do problema de servir os não-bancarizados, cortesia dos serviços baseados em telecomunicações como o M-Pesa, originário do Quénia, mas que é hoje utilizado do Afeganistão à Albânia. Os utilizadores só precisam de um telemóvel e de um contrato com o seu fornecedor de serviços de telecomunicações, nem sequer de uma conta bancária. Podem recarregar o seu saldo numa loja de esquina, protegê-lo com um PIN, e usá-lo para efectuar pagamentos a qualquer pessoa que tenha uma conta.
As plataformas como o M-Pesa estão a ser usadas não só para pagamentos mas também para prestar outros serviços financeiros, como o microcrédito. Por outras palavras, já ultrapassam a Libra no que diz respeito a bancarizar quem não está bancarizado.
As críticas a estes serviços centram-se nos seus custos. Em países onde a empresa dominante de telecomunicações não enfrente muita concorrência, poderá insistir em margens elevadas. Aqui, aparentemente, seria onde a Libra poderia ter efeitos disruptivos e pró-concorrenciais.
Mas isto é apenas um desejo. A realidade é que as mesmas empresas de telecomunicações que são bem-sucedidas na pressão contra novos estreantes no seu sector também pressionariam contra a autorização regulamentar a conceder à Libra.
Quando o problema das economias e dos serviços financeiros é falta de concorrência, os residentes nos países em desenvolvimento têm de voltar-se para os seus próprios reguladores e políticos. O remédio para os seus males não virá de Mark Zuckerberg.
BARRY EICHENGREEN