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Basta de meias-medidas nos impostos sobre as sociedades
Autor: Joseph E. Stiglitz

18-10-2019

A globalização tem tido uma má reputação nos últimos anos e muitas vezes por boas razões. Mas alguns críticos, inclusive o presidente dos EUA, Donald Trump, atribuem as culpas de forma errada, evocando uma imagem falsa na qual a Europa, a China e os países em desenvolvimento encurralaram os negociadores comerciais dos Estados Unidos em maus negócios, levando aos actuais infortúnios dos americanos. É uma afirmação absurda: afinal de contas, foram os Estados Unidos – ou melhor, os Estados Unidos corporativos – que escreveram as regras da globalização em primeiro lugar.

Dito isto, há um aspeto particularmente tóxico da globalização que não recebeu a atenção que merece: a evasão fiscal corporativa. As multinacionais podem muito facilmente transferir as suas sedes e produções para qualquer jurisdição que cobre os impostos mais baixos. E, em alguns casos, elas nem precisam de deslocar as suas actividades comerciais, porque podem apenas alterar a forma como “registam” os seus rendimentos no papel.

A Starbucks, por exemplo, pode continuar a expandir-se no Reino Unido ao mesmo tempo que não paga quase nenhum imposto nesse estado, porque alega que os seus lucros no Reino Unido são mínimos. Mas se isso fosse verdade, a sua expansão contínua não faria sentido. Porquê aumentar a sua presença quando não há lucros? É óbvio que há lucros, mas eles estão a ser canalizados do Reino Unido para jurisdições com impostos mais baixos na forma de royalties, taxas de franquia e outros encargos.

Este tipo de evasão fiscal tornou-se uma forma de arte na qual as empresas mais inteligentes, como a Apple, sobressaem. Os custos agregados de tais práticas são enormes. Segundo o Fundo Monetário Internacional, os governos perdem pelo menos 500 mil milhões de dólares por ano como resultado da deslocação fiscal corporativa. E Gabriel Zucman, da Universidade da Califórnia, Berkeley, e os seus colegas estimam que cerca de 40% dos lucros no exterior feitos por multinacionais americanas são transferidos para paraísos fiscais. Em 2018, 60 das 500 maiores empresas – incluindo a Amazon, a Netflix e a General Motors – não pagaram impostos nos EUA, apesar de apresentarem lucros conjuntos (em termos mundiais) de cerca de 80 mil milhões de dólares. Essas tendências estão a ter um impacto devastador nas receitas fiscais nacionais e a prejudicar o senso de justiça da opinião pública.

Desde o final da crise financeira de 2008, quando muitos países se encontravam com graves dificuldades financeiras, houve uma crescente necessidade de se repensar o regime global de tributação das multinacionais. Um grande esforço é a iniciativa Erosão da Base Tributária e Transferência de Lucros (BEPS) da OCDE, que já produziu benefícios significativos, restringindo algumas das piores práticas, como a que está associada a empréstimos de dinheiro entre filiais. Mas, tal como mostram os dados, os esforços actuais estão longe de ser adequados.

O principal problema é que a BEPS oferece apenas correcções com retalhos a um status quo fundamentalmente imperfeito e incorrigível. Sob o “sistema de preços de transferência” predominante, duas filiais da mesma multinacional podem trocar bens e serviços além fronteiras e, em seguida, valorizar esse comércio “em condições de igualdade de concorrência” quando declaram receitas e lucros para fins fiscais. O preço que eles pagam é o que eles afirmam que seria se os bens e serviços estivessem a ser trocados num mercado competitivo.

Por razões óbvias, esse sistema nunca funcionou bem. Como é que alguém avalia um carro sem motor ou uma camisa sem botões? Não há preços de mercado, nem mercados competitivos, aos quais uma empresa possa fazer referência. E as questões são ainda mais problemáticas no sector de serviços em expansão: como é que se avalia um processo de produção sem os serviços de gestão fornecidos pela sede?

A capacidade das multinacionais de beneficiarem do sistema de preços de transferência aumentou, à medida que o comércio dentro das empresas aumentou, à medida que o comércio de serviços (em vez de bens) se expandiu, à medida que a propriedade intelectual cresceu em importância e à medida que as empresas melhoraram na exploração do sistema. O resultado: transferência em larga escala de lucros transfronteiras, levando a menores receitas tributárias.

É revelador que as empresas americanas não estejam autorizadas a usar preços de transferência para distribuir lucros nos EUA. Isso implicaria a repetida fixação de preços nos bens sempre que atravessassem e voltassem a atravessar as fronteiras entre os estados. Em vez disso, os lucros corporativos dos EUA são distribuídos por diferentes estados numa base estereotipada, de acordo com factores como emprego, vendas e activos em cada estado. E tal como a Comissão Independente pela Reforma da Taxação Corporativa Internacional (da qual sou membro) mostra na sua última declaração, esta estratégia é a única que funcionará a nível mundial.

Por sua vez, a OCDE emitirá em breve uma proposta importante que poderá movimentar um pouco o quadro actual nessa direcção. Mas, se as informações que circulam sobre o seu conteúdo estiverem correctas, ainda assim não seria suficiente. Se for adoptada, a maior parte das receitas corporativas ainda seria tratada com a utilização do sistema de preços de transferência, com apenas uma parcela “residual” distribuída numa base estereotipada. A lógica para essa divisão não é clara; o melhor que se pode dizer é que a OCDE está a canonizar o gradualismo.

Afinal de contas, os lucros corporativos declarados em quase todas as jurisdições já incluem deduções pelo custo de capital e juros. São “residuais” – lucros puros – que surgem das operações conjuntas das actividades mundiais de uma multinacional. Por exemplo, de acordo com a Lei de Redução dos Impostos e Empregos nos EUA de 2017, o custo total de bens de capital é dedutível, além de uma parte dos juros, o que permite que o total dos lucros declarados seja substancialmente menor do que os lucros económicos reais.

Dada a escala do problema, é evidente que precisamos de um imposto mínimo global para acabar com o actual nivelamento por baixo (o que não beneficia ninguém a não ser as corporações). Não há provas de que uma tributação mais baixa no mundo leve a mais investimentos. (É claro que, se um país reduz o seu imposto em relação a outros, pode “roubar” algum investimento; mas essa estratégia de “empobrecer o vizinho” não funciona a nível global). Uma taxa global mínima de imposto deve ser fixada a uma taxa comparável à média atual do imposto sobre as sociedades efectivo, que é de cerca de 25%. Caso contrário, as taxas globais dos impostos sobre sociedades convergirão para o mínimo e o que se pretendia ser uma reforma para aumentar a tributação das multinacionais acabará por ter o efeito oposto.

O mundo está a enfrentar várias crises – incluindo alterações climáticas, desigualdade, crescimento lento e infra-estruturas degradadas – e nenhuma delas pode ser resolvida sem governos com bons recursos. Infelizmente, as actuais propostas de reforma da tributação global simplesmente não vão longe o suficiente. As multinacionais têm de ser obrigadas a fazer a sua parte.

JOSEPH E. STIGLITZ

Joseph E. Stiglitz, Prémio Nobel de Economia, é professor universitário na Columbia University e economista-chefe do Instituto Roosevelt. Seu último livro, Pessoas, Poder e Lucros: Capitalismo Progressivo para uma Era de Descontentamento.

 

 

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