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O verdadeiro custo da guerra comercial
Autor: Raghuram G. Rajan

13-09-2018

Mais um dia, mais um ataque ao comércio. Porque é que todas as controvérsias – independentemente de serem sobre propriedade intelectual (PI), imigração, danos ambientais ou reparações de guerra – produzem agora novas ameaças ao comércio?

Durante grande parte do século passado, os Estados Unidos geriram e protegeram o sistema comercial regulamentado que criaram no fim da II Guerra Mundial. Esse sistema exigiu um corte fundamental com o ambiente de suspeita mútua entre potências concorrentes que existia antes da guerra. Os EUA incentivaram todos a compreender que o crescimento e o desenvolvimento de um país poderia beneficiar todos os países, graças ao aumento do comércio e do investimento.

De acordo com os novos preceitos, adoptaram-se regras para restringir o comportamento egoísta e as ameaças coercivas das potências económicas. Os EUA serviram como potência hegemónica benevolente, administrando a ocasional reprimenda a quem agisse de má-fé. Entretanto, as instituições multilaterais do sistema, especialmente o Fundo Monetário Internacional, ajudavam os países em necessidade extrema de fundos, desde que seguissem as regras.

O poder da América derivava do seu controlo sobre os votos nas instituições multilaterais, tanto de forma directa como através da sua influência sobre os países do G7. Também possuía uma tremenda capacidade económica própria. Essencialmente, porém, a maioria dos países confiava em que os EUA não abusariam do seu poder para defenderem os seus interesses nacionais – pelo menos, não de um modo excessivo. E os EUA tinham poucos motivos para trair essa confiança. Nenhum país se aproximava da sua produtividade económica, e o seu único rival militar, a URSS, estava em grande medida fora do sistema comercial mundial.

A expansão do comércio e dos investimento regulamentados abriu novos e lucrativos mercados às empresas dos EUA. E como se podia dar ao luxo de ser magnânima, a América concedeu a alguns países acesso aos seus mercados, sem exigir um nível de acesso recíproco.

Se os legisladores de uma economia de mercado emergente expressassem preocupações com os potenciais efeitos de mais comércio livre sobre alguns dos seus trabalhadores, os economistas rapidamente os tranquilizariam, dizendo que quaisquer perdas locais seriam contrabalançadas por ganhos no longo prazo. Tudo o que precisavam de fazer era redistribuir os ganhos obtidos com o comércio pelos grupos mais desfavorecidos. Isto provaria ser mais difícil de executar do que dizer. Mesmo assim, nestas democracias nascentes, os protestos dos desfavorecidos eram considerados um custo aceitável, dados os benefícios globais, e eram facilmente contidos. Com efeito, as economias de mercado emergentes tornaram-se tão eficazes a capitalizar as novas tecnologias e os transportes e comunicações de baixo custo que conseguiram captar amplas faixas das indústrias transformadoras dos países industrializados.

Mais uma vez, o comércio afectou os trabalhadores nacionais de forma desigual, mas agora foram os trabalhadores com alguma formação dos países desenvolvidos – especialmente nas cidades pequenas – quem sofreu as consequências, enquanto os trabalhadores mais especializados das indústrias urbanas do sector dos serviços prosperavam.

Ao contrário dos mercados emergentes, onde as raízes da democracia ainda não eram profundas, o descontentamento de uma coorte crescente de trabalhadores destes países não podia ser ignorado. Os legisladores das economias avançadas reagiram então à revolta contra o comércio de duas formas. Primeiro, tentaram impor as suas normas laborais e ambientais aos outros países, através de acordos comerciais e de financiamento. Segundo, insistiram numa aplicação muito mais rigorosa da propriedade intelectual (PI), que é detida na sua maioria por corporações ocidentais.

Nenhuma das abordagens provou ser particularmente eficaz para abrandar a perda de empregos, mas seria necessário algo muito mais importante para perturbar a antiga ordem: a ascensão da China. Tal como o Japão e os tigres do leste asiático, a China cresceu impulsionada pelas exportações industriais. Mas, ao contrário desses países, ameaça agora concorrer directamente com o Ocidente, tanto nos serviços como nas tecnologias de vanguarda.

Resistindo à pressão exterior, a China adoptou normas laborais e ambientais e expropriou PI de acordo com as suas próprias necessidades. Está agora tão perto da vanguarda tecnológica em áreas como a robótica e a inteligência artificial que os seus próprios cientistas poderão provavelmente colmatar eventuais lacunas, caso lhes seja negado o acesso a mercadorias que hoje tem de importar. De forma mais alarmante para o mundo desenvolvido, o florescente sector tecnológico da China está a reforçar a sua destreza militar. E, ao contrário da União Soviética, a China está completamente integrada no sistema comercial mundial.

O pressuposto central da ordem comercial regulamentada – que o crescimento de cada país beneficia os outros – está a ser desmantelado. As economias avançadas consideram que as estruturas regulamentares e normas que adoptaram durante o seu próprio desenvolvimento lhes conferem agora uma desvantagem competitiva relativamente aos países com mercados emergentes, que são relativamente pobres e regulamentados de forma diferente, mas são eficientes. E estes países ressentem-se com as tentativas externas de imposição de normas que não escolheram de forma democrática, como um salário mínimo elevado ou o abandono da utilização do carvão, especialmente porque os países ricos de hoje não tiveram de respeitar essas normas durante o seu desenvolvimento.

De forma igualmente problemática, as economias emergentes, onde se inclui a China, atrasaram a abertura dos seus mercados nacionais ao mundo industrial. As empresas dos países desenvolvidos estão especialmente ansiosas pelo acesso sem restrições ao atraente mercado chinês, e têm insistido com os seus governos para garantir a sua exploração.

Porém, o mais problemático é que, com a China a desafiar os Estados Unidos tanto no campo económico como no militar, a antiga potência hegemónica já não encara o crescimento da China como uma bênção incontestável. Tem poucos incentivos para conduzir de forma benevolente um sistema que permita a emergência de um rival estratégico. Não admira que o sistema se esteja a desmoronar.

Para onde nos dirigiremos? A China pode ser desacelerada mas não pode ser imobilizada. Em vez disso, uma China poderosa terá de conseguir ver o valor de novas regras, tornando-se até uma guardiã dessas regras. Para que isso aconteça, terá de participar na sua definição. Caso contrário, o mundo poderá separar-se em dois ou mais blocos desligados e reciprocamente desconfiados, interrompendo os fluxos de pessoas, produção e finanças que hoje os ligam. Isso não seria apenas calamitoso para a economia: aumentaria os desentendimentos e a possibilidade de conflito militar.

Infelizmente, o tempo não volta atrás. Uma vez quebrada, a confiança não pode ser magicamente restabelecida. Espera-se que a China e os Estados Unidos evitem abrir mais novas frentes na guerra comercial e tecnológica, ao mesmo tempo que reconheçam a necessidade de negociações. Preferencialmente, celebrariam um projecto de acordo bilateral temporário. A seguir, todos os principais países se reuniriam para negociar uma nova ordem mundial, que acolheria várias potências ou blocos em vez de uma única potência hegemónica, com regras que garantissem que todos – independentemente do seu sistema político ou económico ou do seu estádio de desenvolvimento – se comportariam de forma responsável.

Da última vez, foi preciso uma Depressão, uma Guerra Mundial e uma superpotência para que o mundo ouvisse a razão. Poderá esta vez ser diferente?

RAGHURAM G. RAJAN

Raghuram G. Rajan, governador do Reserve Bank da Índia de 2013 a 2016, é professor de Finanças na Booth School of Business da Universidade de Chicago e autor, mais recentemente, do Terceiro Pilar: Como os Mercados e o Estado deixam a Comunidade para trás.

 

 

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