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O DÓLAR E OS SEUS DESCONTENTES
Autor: Barry Eichengreen

19-10-2018

O unilateralismo do presidente dos EUA, Donald Trump, está a reconfigurar o mundo de forma profunda e irreversível. Está a enfraquecer o trabalho de muitas instituições multilaterais. Outros países, por seu lado, já não encaram os Estados Unidos como sendo um parceiro fiável de alianças, e sentem-se impelidos a desenvolver as suas próprias competências geopolíticas.

Agora, a administração Trump está a minar o papel global do dólar. Ao ter reinstituído unilateralmente as sanções sobre o Irão, está a ameaçar com penalizações as empresas que desenvolvam actividade com a República Islâmica, negando-lhes acesso aos bancos dos EUA.

Esta ameaça é séria, porque os bancos dos EUA são a principal fonte dos dólares usados em transacções transfronteiriças. Segundo a   Society for Worldwide Interbank Financial Telecommunication   (SWIFT), os dólares são usados em quase metade de todos os pagamentos transfronteiriços, uma proporção que é muito maior do que o peso dos EUA na economia mundial.

Como resposta à posição da administração Trump, a Alemanha, a França e a Grã-Bretanha, juntamente com a Rússia e a China, anunciaram planos para evitarem o dólar, os bancos dos EUA, e o escrutínio do governo dos EUA. O termo “planos” poderá ser exagerado, já que foram revelados poucos detalhes. Mas estes três países descreveram, em termos gerais, a criação de uma entidade financeira autónoma, detida e organizada pelos governos em causa, para facilitar as transacções entre o Irão e empresas estrangeiras.

Presumivelmente, essas empresas regularizarão as suas contas em euros, e não em dólares, libertando-as da dependência relativamente aos bancos dos EUA. E na medida em que a entidade instrumental dos europeus também contorne a SWIFT, os EUA terão dificuldade em monitorizar as transacções entre o Irão e as empresas estrangeiras, e em aplicar penalidades.

Este esquema será viável? Embora na verdade não existam obstáculos técnicos à criação de um canal alternativo de pagamentos, isso certamente que enfurecerá Trump, que responderá presumivelmente com outra ronda de tarifas aduaneiras contra os países em causa. Esse, infelizmente, é o preço da independência política, pelo menos por agora.

Depois de aprenderem uma dolorosa lição sobre a dependência do dólar, os restantes países afastar-se-ão, em termos genéricos, dessa moeda? O facto de o dólar ser tão amplamente usado torna isso difícil. Os bancos e as empresas preferem usar dólares, porque muitos outros bancos e empresas usam dólares, e esperam que as suas contrapartes façam o mesmo. Mudar para outra moeda obrigaria a uma acção coordenada. Mas tendo essa mesma coordenação sido anunciada pelos governos de três grandes países europeus, esse cenário já não poderá ser excluído.

Vale a pena relembrar o modo como o dólar primeiramente ganhou proeminência internacional. Antes de 1914, não desempenhava um papel internacional de vulto. Mas um choque geopolítico, juntamente com uma alteração institucional, transformou o estado do dólar.

O choque geopolítico foi a I Grande Guerra, que trouxe dificuldades aos países neutrais para a concretização de transacções com bancos Britânicos e para a liquidação de contas em libras esterlinas. A alteração institucional foi a Lei da Reserva Federal, ao criar uma entidade que aumentou a liquidez dos mercados nos créditos denominados em dólares, e permitiu pela primeira vez que os bancos dos EUA exercessem actividade no estrangeiro. No início da década de 1920, o dólar tinha atingido e, em algumas dimensões, ultrapassado a libra esterlina como o principal veículo para as transacções internacionais.

Este precedente sugere que seja plausível um período entre 5 a 10 anos para que os EUA possam perder o que Valéry Giscard d’Estaing, então ministro das finanças de França, apelidou famosamente de “privilégio exorbitante”, que lhes teria sido conferido pelo facto de emitirem a principal moeda internacional do mundo. Isto não quer dizer que os bancos e empresas estrangeiros rejeitem completamente o dólar. Os mercados financeiros dos EUA têm grande dimensão e liquidez, e é provável que assim continuem. Os bancos dos EUA exercem actividade em todo o mundo. Em particular, as empresas estrangeiras continuarão a usar dólares nas suas transacções com os EUA.

Mas, numa era de unilateralismo dos EUA, essas empresas quererão resguardar as suas apostas. Se o choque geopolítico do unilateralismo de Trump estimular uma inovação institucional que facilite o pagamento em euros às instituições bancárias e empresas europeias, então a transformação poderá ser bastante rápida. Se o Irão receber euros em vez de dólares em pagamento das suas exportações de petróleo, usará esses euros para pagar as suas importações de mercadorias. Se as empresas de outros países ganharem euros em vez de dólares, existirá menos justificação para que os bancos centrais detenham dólares, para poderem intervir no mercado cambial estrangeiro e estabilizar a moeda local relativamente à nota verde. Neste ponto, já não seria possível retroceder.

Uma motivação para a criação do euro consistia em libertar a Europa da excessiva dependência do dólar. Essa era, do mesmo modo, uma das motivações da China para procurar a internacionalização do renminbi. Até agora, o êxito de ambos estes esforços terá sido contraditório, na melhor das hipóteses. Ao ameaçar punir a Europa e a China, Trump está, ironicamente, a ajudá-las a atingir os seus objectivos.

Além disso, Trump está a desperdiçar a vantagem dos EUA. Se colaborasse com os Europeus e os Chineses, poderia ter ameaçado o Irão, e as empresas que aí exercem actividade, com sanções abrangentes e eficazes, caso houvesse provas de que o país não estava a cumprir as suas obrigações de desnuclearização. Mas a colaboração para assegurar o cumprimento por parte do Irão era precisamente o que previa o Plano Conjunto de Acção Comum, abandonado pela administração Trump no início deste ano.

Barry Eichengreen

Barry Eichengreen é professor de Economia na Universidade da Califórnia, Berkeley; Pitt Professor de História e Instituições da Universidade de Cambridge American; e ex-conselheiro sénior de políticas do Fundo Monetário Internacional. Seu último livro é Hall of Mirrors: A Grande Depressão, a grande recessão, e os usos - e abusos - de História.

 

 

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