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O ZERO LÍQUIDO NÃO É ZERO
Autor: Maureen Santos, Linda Schneider

12-11-2021

Poderá parecer que o mundo está finalmente a encarar com seriedade a crise climática, a julgar pelo número de compromissos para chegar às “emissões zero líquidas” (NdT: no original, net-zero emissions). Entre os principais emissores, tanto os Estados Unidos  como a União Europeia  prometeram alcançar esta meta até 2050, enquanto a China  pretende ser neutra em termos de carbono antes de 2060. Até as gigantes petrolíferas Shell  e BP  planeiam atingir as emissões zero líquidas até meados do século.

As grandes empresas tecnológicas aparentam ser ainda mais ambiciosas. A Amazon comprometeu-se em atingir as emissões zero líquidas de dióxido de carbono até 2040. A Microsoft  prometeu ser “carbono-negativa” até 2030, e até 2050 pretende remover da atmosfera todo o CO 2  emitido pela empresa desde que foi fundada em 1975. A Google  alega ser neutra em termos de carbono desde 2007, e pretende tornar-se “livre de carbono” até 2030. Com efeito, os compromissos com o zero líquido vieram de todos os sectores da economia, nomeadamente da indústria pecuária e dos lacticínios, da aviação, da extracção mineira, dos serviços financeiros e do retalho.

Mas estes objectivos aparentemente ambiciosos na realidade traduzem-se em mais uma ronda do plano verde (NdT: no original, greenwashing, a prática de aparentar uma postura ecológica) e em distracções perigosas  que atrasarão e impedirão a adopção  de verdadeiras soluções climáticas. Isso acontece porque zero líquido não é mesmo zero.

Para começar, 2050 está quase a três décadas de distância. Assumir compromissos de longo prazo com o zero líquido permite aos governos e às empresas evitarem reduções drásticas e imediatas das emissões. Especialmente numa perspectiva de justiça climática, o meio do século já é demasiado tarde. Os países abastados e industrializados do Norte Global, devido ao seu histórico de emissões e actuais níveis de riqueza, têm a responsabilidade de descarbonizar muito mais depressa.

Para agravar o problema, muitos planos para o zero líquido não estão sustentados por correspondentes metas de curto prazo e intercalares, por exemplo, até 2025. Em vez disso, a maioria das contribuições determinadas nacionalmente para os países ao abrigo do acordo de Paris sobre o clima  de 2015, que foram recentemente actualizadas ou revistas, baseiam-se num cronograma até 2030. Isto desrespeita o ciclo quinquenal de análise previsto pelo acordo de Paris.

Pior ainda, a inclusão do termo “líquido” nos compromissos climáticos confirma que as emissões não serão realmente anuladas. Em vez disso, serão supostamente compensadas (numa amplitude imprecisa e discutível) pela remoção do CO 2  da atmosfera.

Muitos destes regimes de zero líquido dependem excessivamente dos ecossistemas naturais para remover e armazenar o CO 2  atmosférico. Isto despertou o actual entusiasmo em torno das denominadas soluções de base natural. Embora a reposição cuidadosa dos ecossistemas naturais seja crucial para abordar tanto a crise climática como a crise da biodiversidade, não deverá servir para prolongar o tempo de vida de indústrias poluentes. Mas as soluções de base natural também incluem propostas  que transformariam a agricultura numa oportunidade de grande escala para redução de emissões associada ao mercado de carbono no solo.

Os planos para o zero líquido também dependem frequentemente de ajustes tecnológicos especulativos para remover CO 2  da atmosfera. As tecnologias de geo-engenharia climática, como a bio-energia com captura e armazenamento de carbono (BECAC) ou a captura directa da atmosfera (CDA), são extremamente arriscadas nem foram comprovadas, e poderiam ter consequências potencialmente devastadoras para pessoas e ecossistemas. De qualquer forma, a opção por “soluções” como a BECAC ou a CDA implica ficarmos presos a várias décadas adicionais de produção e combustão continuadas de combustíveis fósseis.

O debate necessita, em vez disso, de voltar às verdadeiras soluções climáticas, que actualmente não se encontram representadas nas conferências intergovernamentais de alto nível. O debate deveria centrar-se numa transformação abrangente e há muito necessária dos nossos sistemas económicos exploradores e destrutivos. A redução das emissões globais de gases com efeito de estufa (GEE) até ao zero verdadeiro obriga a endereçar as inúmeras injustiças globais e históricas que causaram a crise climática e que continuam a condicioná-la.

Especificamente, os direitos, vidas e meios de subsistência dos povos indígenas e das comunidades locais terão de estar no centro de qualquer solução climática. Isto significa escutar estes grupos e levar a sério as suas práticas e propostas. O fortalecimento e a protecção dos seus direitos fundiários é uma das formas mais eficazes para proteger os ecossistemas, a biodiversidade e o clima.

Além disso, a partir de agora precisamos de deixar os combustíveis fósseis no subsolo. Não podem existir desenvolvimentos adicionais destes recursos, e as infra-estruturas de combustíveis fósseis existentes têm de ser descontinuadas o mais rapidamente possível, permitindo uma transição justa para os trabalhadores e comunidades que delas dependem.

O abandono da agricultura industrial é outra prioridade elevada. A produção excessivamente intensiva e destrutiva esgotou os solos e ecossistemas da Terra, e gera enormes emissões de GEE, apesar de alimentar apenas uma fracção  da população mundial. É um importante motor de desflorestação, e a resultante destruição de barreiras e zonas-tampão ecológicas terá provavelmente contribuído para a eclosão da pandemia da COVID-19.

Em contrapartida, a agro-ecologia proporciona novas possibilidades de transformação sócio ecológica e pode contribuir para combater as alterações climáticas de uma forma segura. Esta abordagem também pode ajudar a garantir a segurança e soberania alimentar e nutricional e a conservar a biodiversidade.

O consumo excessivo do Norte Global e a exploração motivada pelo lucro dos recursos mundiais têm de acabar. No seu lugar, temos de alinhar as actividades económicas com os objectivos da justiça social e climática global, pondo o bem-estar e a conservação no centro dos nossos esforços para protecção do nosso ambiente partilhado.

Os recentes compromissos com o zero líquido podem parecer ambiciosos, mas apenas promovem um conjunto de falsas soluções, a coberto de 50 tons de verde. Os governos e as empresas têm de abandonar, de uma vez por todas, as suas estratégias de plano verde. Neste momento crucial, precisamos de verdadeira vontade política  para criar uma verdadeira mudança.

MAUREEN SANTOS

Maureen Santos, Coordenadora do Grupo Consultivo Nacional da Federação das Organizações de Assistência Social e Educacional (FASE), é professora da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro e ex-coordenadora de programas da Fundação Heinrich Böll no Rio de Janeiro.

LINDA SCHNEIDER

Linda Schneider é Directora Sénior de Programa de Política Climática Internacional no escritório da Fundação Heinrich Böll em Berlim.

 

 

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