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A crise da água que o homem provocou em África
Autor: Asit K. Biswas, Cecilia Tortajada

02-03-2018

SINGAPURA – Há cerca de uma década, numa reunião de autarcas sul-africanos convocada por Lindiwe Hendricks, na altura a ministra para a água e questões ambientais, previmos que uma crise da água sem precedentes atingiria uma das principais cidades do país no prazo de 15 anos, a menos que as práticas de gestão de água melhorassem significativamente. Essa previsão concretizou-se agora, com a Cidade do Cabo a enfrentar o encerramento da sua rede de água canalizada. O importante agora consiste em saber se os líderes Africanos permitirão que se materialize a nossa outra projecção, que prevê que nos próximos 25 a 30 anos muitas outras cidades do continente enfrentarão crises semelhantes.

Há muito que África se debate com a gestão das águas e águas residuais urbanas. Enquanto a população do continente aumentou rapidamente, desde perto de 285 milhões em 1960 até os quase 1300 milhões da actualidade, a premência do desafio não deixou de crescer. E estas tendências devem intensificar-se: em 2050, a população total do continente deverá exceder os 2,5 mil milhões de habitantes, com 55% a viver em ambientes urbanos.

O desafio enfrentado pelos países africanos pode não ser único, mas não deixa de ser inédito. Afinal, nos países ocidentais, a urbanização ocorreu durante um período muito mais alargado, e foi enquadrada por condições económicas em melhoria constante. Para construírem sistemas eficazes para a gestão das águas e águas residuais, as cidades dispuseram de fundos adequados ao investimento e de conhecimentos relevantes.

Em África, as capacidades financeiras e de gestão das cidades estão já comprometidas. Como consequência, a gestão das águas e águas residuais tem ficado para trás, já que os legisladores só se preocupam com questões relacionadas com a água quando ocorrem secas ou cheias. O Centro do Terceiro Mundo para Gestão da Água estima que só 10 a 12% da população africana tem acesso à captação, ao tratamento e à eliminação adequada de águas residuais municipais e industriais.

Dado que a construção das infra-estruturas e dos sistemas necessários para satisfazer as necessidades de água das cidades africanas deverá demorar entre 20 a 30 anos, é essencial que os governos se comprometam de forma sustentada. O desenvolvimento de sistemas para eliminação das águas residuais que sejam mais amigáveis do ponto de vista ambiental é um imperativo essencial, assim como a limpeza dos cursos de água dos centros urbanos e respectivos arredores que já estejam intensamente contaminados.

Um esforço desse tipo deverá basear-se numa  abordagem abrangente à avaliação da qualidade da água que cubra uma grande gama de poluentes (muito maior que os 10 a 40 que a maior parte dos serviços de saneamento africanos monitorizam actualmente), com a garantia de que sejam adicionados novos poluentes à medida que forem identificados. Cidades como Singapura monitorizam hoje regularmente 336 parâmetros de qualidade da água para garantir a segurança da água. Para isso, África precisará de aceder a conhecimentos relevantes, financiamento adequado, e laboratórios bem geridos – tudo factores que são actualmente escassos.

Não será fácil financiar estes esforços; Por um lado, há muito que a corrupção oficial enfraquece o investimento no planeamento, concepção e construção das infra-estruturas hídricas, bem como na gestão eficaz da infra-estrutura existente. Por outro lado, o valor social da água – incluindo o seu papel central em muitas religiões africanas – há muito que limita a capacidade dos governos para a criação de um modelo de financiamento viável para as companhias de águas.

Embora os países estejam normalmente dispostos a comercializar recursos como petróleo, gás, minérios, madeira e produtos agrícolas, nenhum país do mundo vende a sua água a outros países. O Canadá aprovou o Acordo de Comércio Livre Norte-Americano apenas depois do seu parlamento ter confirmado que o Acordo não seria aplicável à água no seu estado natural. Em estados federais como a Índia e o Paquistão, até províncias específicas recusam perspectivar a concessão de água aos seus vizinhos.

Os países também não ganham internamente muito dinheiro com a água. Em 2001, a África do Sul lançou uma “Política de Abastecimento Básico e Gratuito de Água”, de acordo com a qual todos os agregados familiares, independentemente da sua dimensão ou rendimento, recebem seis quilolitros (1585 galões) de água por mês, a custo zero. Poderíamos defender que isto acontece porque a água é necessária à sobrevivência; mas esse é também o caso da alimentação. E embora tanto a água como a alimentação sejam garantidas na constituição da África do Sul, apenas a água é cedida gratuitamente.

E a África do Sul não constitui um caso isolado. Na maior parte dos centros urbanos do mundo, a água é gratuita ou altamente subsidiada, e os políticos têm relutância em alterar esse estado de coisas. O preço da água em Singapura não sofreu quaisquer aumentos entre 2000 e 2016, e os preços da água em Hong Kong não se alteraram desde 1996, embora o preço de tudo o resto tenha subido.

Sendo óbvio que a água não deverá tornar-se num dispendioso bem de luxo, a relutância dos governos em cobrarem um valor adequado por ela tem enfraquecido a sua capacidade de investimento em serviços públicos de água, nomeadamente na recolha e tratamento adequados de águas residuais. Longe de nivelar o terreno, isto tornou a gestão urbana da água menos justa na maior parte das cidades, porque o estado é incapaz de fornecer os serviços necessários de um modo eficiente, sustentável ou abrangente.

Quando a rede de águas da Cidade do Cabo for encerrada por se atingirem níveis perigosamente reduzidos nos reservatórios (provavelmente, a 9 de Julho), os residentes deverão fazer fila num dos 200 pontos de recolha de água, para recolherem 25 litros por pessoa e por dia. Essa tarefa será especialmente difícil para as pessoas pobres e vulneráveis.

Ao debaterem as causas desta crise, os políticos e os meios de comunicação da África do Sul concentram-se frequentemente nas alterações climáticas – um culpado que não se pode defender. Mas a verdade é que o estado deplorável da gestão urbana das águas, exemplificado pelo facto de 36% da água em cidades sul-africanas serem perdidos em vazamentos ou não serem pagos, comparados com 3,7% em Tóquio e 8% em Phnom Penh, continua a ser uma razão principal para a desactivação.

A gestão das águas urbanas não é nada de transcendente. Há décadas que as soluções são bem conhecidas, e que estão disponíveis as tecnologias e o conhecimento necessários, e até mesmo o financiamento. O que tem faltado é vontade política, procura pública sustentada, e escrutínio contínuo por parte dos meios de comunicação. A crise da Cidade do Cabo deveria servir como sinal de alerta para toda a África. Infelizmente, tal como os recursos aquíferos de África, será provavelmente desperdiçada.

ASIT K. BISWAS

Asit K. Biswas é Professor Visitante Distinguido na Escola de Políticas Públicas Lee Kuan Yew em Cingapura e co-fundador do Terceiro Centro Mundial de Gestão da Água. Ele foi fundador da Associação Internacional de Recursos Hídricos e do Conselho Mundial da Água.

 

 

 

 

CECILIA TORTAJADA

Cecilia Tortajada é pesquisadora senior no Instituto de Políticas de Águas, Lee Kuan Yew School of Public Policy, Universidade Nacional de Singapura.

 

 

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