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A noite em que António Lobo Antunes quis comprar-me o seu livro

21-02-2020 - Catarina Fernandes

Um dia vou contar a história aos meus filhos e netos de como o meu escritor preferido tentou comprar-me um livro, escrito por ele próprio.

Então começa assim, na noite de 15 de fevereiro, regressa finalmente ao Porto um escritor de seu nome António Lobo Antunes. Chegamos à porta da Livraria Lello, e esperamos um longo tempo, numa fila para conseguir entrar. Mas bem, tratando-se de quem é, o tempo de espera é o detalhe menos importante desta história.

À medida que fomos entrando o assombro vai tomando conta de nós, primeiro porque a Livraria Lello, com luzes noturnas é ainda mais bonita, e depois porque conseguimos um espetáculo, cada vez mais raro nos últimos tempos, que é entrar e encontra-la vazia. Uma caverna mágica, digna das melhores histórias infantis.

Os sortudos que, como eu, conseguiram entrar, foram-se espalhando por cada cantinho disponível enquanto esperávamos António Lobo Antunes. Chegou por fim e entrou pela porta da frente, percorreu o corredor principal até à cadeira onde o esperava o grande poeta João Luís Barreto Guimarães. Sentou-se e ficou a olhar à volta, ora para a esquerda, ora para a direita como que espantado que, toda aquela gente estivesse ali para o ver.

Antes de começarem a conversa, ouve-se um áudio com uma leitura do próprio Lobo Antunes onde este fala dos tempos duros da guerra. Atrás dele, num canto está um colega e amigo desses tempos, encolhido de dor com lágrimas a correrem-lhe pela face, provocadas pelo despertar de memorias de outros tempos, que a voz do escritor iam trazendo de volta. Lobo Antunes levanta-se vai ter com ele e abraça-o. Durante um bom tempo ficam ali, aqueles dois homens abraçados, esquecidos do tempo e do espaço, e nós, invasores, a assistir a este momento tão íntimo, tão terno, a não conseguir conter as lágrimas. Aqueles dois homens de uma ternura sem fim.

Segue-se então uma conversa entre Lobo Antunes e Barreto Guimarães, que é sobretudo uma conversa invocativa da memória de elefante do escritor, onde se recuperam historias, da guerra, sempre a guerra, que tanto marcou a alma do escritor, e dos seus “príncipes”, como gosta de chamar aos seus camaradas; da sua infância, da descoberta da sua vocação de escritor e da sua obrigação de passar primeiro pela medicina; da rejeição que os seus livros sofreram inicialmente; da sua primeira mulher, Maria José, da imaturidade que são as separações e de como a maturidade por vezes chega tarde demais; da escrita como um trabalho diário, não fruto de laivos de inspiração ou da temperatura térmica certa para florescer, mas antes o resultado de esforço, de um exercício de persistência, um trabalho difícil, do qual o leitor não deve dar conta de que existe; da vontade que tem de continuar a escrever e a vontade que sempre tem de escrever mais; o sentido de humor sempre presente, sempre franco, provocador e simples ao mesmo tempo, esse sentido de humor que o têm aqueles que já viveram muito e sabem que a vida não vai acabar bem, mas que tem de acontecer.

Terminada a conversa, Lobo Antunes, pede para fumar um cigarro, como que para ganhar forças para a sessão de autógrafos que se avizinha. Quando regressa, com um ar cansado diz que só tem energias para assinar uns vinte livros. Coloco-me na fila agarrada à minha primeira edição de “Fado Alexandrino”, 1.ª edição de 1983, na tentativa de ser uma das bafejadas pela sorte. As pessoas vão colocando os livros em cima da mesa, e o seu camarada e amigo vai pegando em alguns para dá-lhe para assinar. Vê o meu vira-se e diz, oh António tens de assinar este, é uma raridade. O António pega no livro, faz-lhe uma festa como se fosse um filho que já não vê há muito, e pergunta de quem é o livro. Eu digo que é meu, imediatamente aqueles olhos azuis, cobertos com uma cortina de água olham para mim. Aqueles olhos. Daquele azul. Olha para mim e pergunta-me, posso comprar-lhe o livro? Aceno com a cabeça que não, incapaz de dizer mais alguma coisa. Ele folheia o livro, cheira-o. Cheira a papel diz ele. Volta a dizer-me que se o quiser vender para ligar para a Dom Quixote, que eles compram. Eu sorria e não dizia nada, como poderia eu vender as poucas coisas que tenho de valor.

Assina o meu livro, volta aqueles olhos azuis para mim outra vez e diz-me, não caia na asneira do o vender.

Aquelas palavras. Aqueles olhos. Há encontros que não se esquecem. Histórias que se guardam para sempre.

É o Lobo Antunes.

Fonte: Comunidade Cultura e Arte

 

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