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O ADEUS DOS MONGES DA CARTUXA

18-10-2019 - Texto Cristiana Martins fotografia António Pedro ferreira

VÍDEO E EDIÇÃO JOSÉ CEDOVIM PINTO

Os monges cartuxos, os mais solitários dos solitários, vão deixar Portugal para sempre. Com eles levam uma dimensão religiosa ímpar e a surpresa de terem sido tocados pela saudade. As razões de uma partida que conseguiu ser adiada por 30 anos.

erço entre os dedos, capucho sobre os olhos, a tábua sob o corpo. Tão pouco é tudo. E basta-lhes. Quando um monge cartuxo morre, os companheiros de clausura fecham-lhe sobre o rosto o capucho branco, costurando-o, para que ao chegar à eternidade só veja o rosto de Deus. Nas mãos, colocam-lhe um terço. Sob o corpo, uma tábua. Desce à terra e nesta é posta uma cruz de ferro, sem identificação. No claustro do Mosteiro de Scala Coeli, às portas de Évora, o ritual repetiu-se 120 vezes entre os séculos XVII a XIX; houve seis defuntos no século XX e duas cruzes foram acrescentadas nesta era. As últimas.

Em outubro, os quatro resistentes que ali vivem vão partir para Espanha. Não queriam abandonar o mosteiro de Scala Coeli — escada para o céu em latim —, concluído em 1598. Desejavam morrer no Alentejo, mas a Ordem assim o determinou. Com eles levam o imenso silêncio que os caracteriza, deixando o testemunho de austeridade da única ordem contemplativa masculina em Portugal. Mas há mil anos que os cartuxos sabem que “Stat Crux dum volvitur orbis” (“o mundo roda e a cruz fica”).

Até à véspera da partida — ainda sem dia certo, à espera do “amigo espanhol” que os levará de automóvel às imediações de Barcelona, à Cartuxa de Santa Maria de Montalegre — vão cantar. Suportados por uma fé de dimensão ímpar que os fez calar para o mundo, em busca da integração íntima com Deus. Calaram-se para ouvir a voz divina. Padre Antão López, um espanhol de 85 anos, que estudou Letras e Filosofia; padre Isidoro, espanhol, 92, ex-estudante; irmão José, 91, um marceneiro espanhol; e irmão António, o único português, 82, ex-funcionário das alfândegas. Estão velhos, não cansados.

O superior de Scala Coeli aceitou estabelecer uma correspondência digital com o Expresso, em que responde às dúvidas e, sobretudo, conta a história nunca partilhada dos bastidores da partida da Ordem de Portugal. E explica por que motivo os portugueses não têm perfil para serem cartuxos. Passo a passo, conforme dita o ritmo cartusiano, Antão López dialoga por correio eletrónico, porque o claustro está vedado às mulheres.

MATINAS, 23H30, ACORDAR

A rotina dos cartuxos está dividida em três grandes partes. A mais importante são as oito horas diárias dedicadas à oração, mas há oito horas de trabalho e oito de descanso. Os dias dos monges começam antes da meia-noite. No íntimo da cela, levantam-se, rezam e quando o sino repica, assomam à porta. Esperam a chamada para as Matinas e as Laudes da Santíssima Virgem. Dirigem-se à igreja, à meia-luz, onde oram, cantando as melodias gregorianas durante duas a três horas. A cena repete-se nos mosteiros da Ordem há 935 anos, desde que Bruno Hartenfaust, nascido em Colónia a 6 de outubro de 1032, criou com seis amigos, entre as pedras dos arredores de Grenoble Chartreuse — zona em França que deu nome à Ordem —, que ficariam conhecidos como o Grande Deserto cartusiano.

Durante a semana, os monges não falam, nem mesmo entre eles. O diálogo só é permitido aos domingos, após o almoço, e nos passeios de segunda-feira

Nesta história milenar, foram precisos quase cinco séculos para começar o calvário de Scala Coeli, como conta padre Antão López. “Os cartuxos na Europa são poucos e idosos e por isso, em 2011, o Capítulo Geral — onde a cada dois anos se reúnem os priores das várias cartuxas para governar a Ordem — decidiu o termo de Scala Coeli, onde apenas moravam cinco octogenários.” A definitiva decisão do encerramento, agora anunciada, tem, portanto, pelo menos oito anos, mas foi na altura recusada pelos idosos monges. “Recusaram, não desobedecendo, mas convencendo”, diz o superior, assumindo uma missão ainda mais pesada do que a que já tinham: a de demonstrar aos companheiros de fé que mesmo “um pequeno número podia viver integralmente a vida cartusiana”.

Como superior de Scala Coeli, padre Antão declarou a intenção dos companheiros, que acabou por ser aceite pelos demais priores e foi-lhes dada permissão de permanecer na casa onde viviam. Passados quase dez anos, restam quatro monges. Fragilizados, mas resistentes. “Nem uma só noite foram omitidas as Matinas [oração da manhã, proferida à meia-noite].” Em nada aqueles homens cederam, todas as regras foram cumpridas. “Mas era cada vez mais heroico, sobretudo para os dois nonagenários”, desabafa. O Capítulo Geral deste ano acabou por determinar o encerramento do único mosteiro cartuxo em Portugal, sem margem de contestação. Ou, como prefere explicar o superior, a casa-mãe “teve razão e caridade ao decidir a mudança desses monges para serem cuidados noutra Cartuxa”. Serão enterrados noutro chão.

Sete monges fundaram o mosteiro em 1587 e sete foram chamados para o refundar em 1960. Mas agora nem sete há para o encerrar

O mosteiro português foi construído no fim do século XVI pelo arcebispo D. Teotónio, da Casa de Bragança, que não poupou em dotá-lo de tesouros artísticos, como o pórtico e a fachada em mármore. No século XVIII chega outro ex-líbris, por ordem de D. João V: a talha dourada, que fez com que a igreja fosse declarada monumento nacional em 1910. O edifício é simples, a traça assemelha-se à da de Santa Cecília, em Trastevere, mas é generoso em espaço, abrigando o maior claustro de Portugal, com cada lateral a medir quase 100 metros.

Testemunha das mudanças políticas do país, em 1834, o mosteiro foi tomado pelas forças revolucionárias e os cartuxos expulsos. O Estado assumiu a propriedade, aproveitando-o para a Escola de Agricultura, e a igreja serviu de celeiro. No fim do século XIX, a família Eugénio de Almeida comprou o que restava. Ruínas. Até que Vasco Maria, conde de Vil’alva, avançou com o restauro do edificado, devolvendo-o à Ordem que lhe dera sentido. E o círculo pareceu fechar-se: sete monges fundaram o mosteiro em 1587 e sete foram chamados para o refundar em 1960. Mas agora nem sete há para o encerrar. Em Portugal, a Ordem mirrou.

Padre Antão no terraço do Mosteiro de Scala Coeli, com vista para o interior do maior claustro de Portugal

“Esses 60 anos foram um sucesso para a Cartuxa, não para os cartuxos”, assume padre Antão, no tom de quem pesa bem o que fala porque fala pouco. “A Cartuxa de Santa Maria Scala Coeli converteu-se numa instituição estimada e aproveitada em todo Portugal. Dizemos aproveitada porque o povo cristão a viu como de facto era, destinada a interceder por ele. Continuamente pedira, no portão, ao telefone ou pelos correios, orações por todo o tipo de necessidades. Espirituais, dramáticas, familiares, profissionais, de saúde e até económicas. Esta confiança explica-se por este povo católico ser ainda tradicionalmente religioso, piedoso, devoto.” Durante anos, os monges cumpriram os serviços a que estavam votados — a intercessão e o testemunho. Mas o superior partilha o revés: “A este sucesso do mosteiro ou da Ordem não correspondeu um equivalente fruto vocacional.” Faltaram-lhes os portugueses.

“O feitio luso é emotivo, sentimental. Cantam chorando, ausentam-se com saudade, revoltam-se com flores”

Os candidatos foram chegando, mas a um ritmo insuficiente para garantir a sobrevivência da comunidade cartusiana portuguesa e, quase seis décadas após a reabertura do mosteiro alentejano, há apenas cinco monges portugueses em toda a Ordem. “E três enterrados”, detalha, rigoroso, padre Antão para explicar: “O feitio luso é emotivo, sentimental. Cantam chorando, ausentam-se com saudade, revoltam-se com flores, convidam cada semana um vizinho. A solidão e a rutura com a família são exigências que dificultaram e impediram a muitos a entrada no deserto.” Mais uma vez, a fé suportou o homem. “Deus dispôs que [após a partida] fique um nome, uma fama, um estilo de vida, uma mensagem, uma espiritualidade, uma conceção do cristianismo, que já fez muito bem a este país e pode continuar a fazê-lo, se este nome de cartuxa ficar para evocar tudo o que isso significa”, anseia o superior de Scala Coeli.

“Octogenários, nunca omitimos as duas horas de canto à meia-noite”, garante padre Antão, explicando que ao não se confirmar o encerramento do mosteiro, os priores das demais casas exclamaram espantados: “Milagre da Virgem de Fátima!” Mas, por mais que os monges de Évora insistissem que queriam morrer em Scala Coeli, Roma pediu a todas as ordens que unissem as comunidades mais reduzidas e, explica Antão López, “por caridade com estes heroicos velhinhos”, este ano, os demais superiores decidiram uni-los à mini-Cartuxa de Montalegre, a 30 quilómetros de Barcelona, onde os esperam outros oito monges. As comunidades contemplativas são sempre reduzidas e as cartusianas, ainda mais. Sobretudo quando em causa está a pureza da tradição eremítica, cumprida à risca em Évora.

ANGELUS, 7H, MISSA, ESTUDO E ALMOÇO, 12H

O repouso após as Matinas e as Laudes prolonga-se até às 6h30, meia hora mais tarde é o momento do Angelus e depois da missa conventual. A seguir será tempo de regressar à cela, na verdade uma pequena casa com dois pisos e várias divisões, para estudar, meditar sobre textos bíblicos ou simplesmente orar. Também haverá tempo para sentir o sol, ler ou trabalhar; cada monge no seu jardim privado, no mais estrito silêncio. O almoço, elaborado por um irmão, é entregue por uma janela, sem qualquer troca de palavras. Só peixe ou ovos e vegetais, nunca carne. E há dias em que se impõe o jejum.

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Todas as noites, os quatro monges oram a cantar, durante duas a três horas

Uma das forças da Ordem vem da sua constância — “O que procuras?”, perguntam os monges aos que chegam. “Graça”, respondem os candidatos. “Ergue-te”, dizem os que já lá estão, para receberem os noviços com um abraço. Para ingressar, devem ter entre 20 e 45 anos, desejar o recolhimento e buscar a contemplação. Padre Antão é um exemplo. Ao nascer, os pais chamaram-lhe Eduardo e, quando aos 20 anos, ingressou na Ordem, deixou para trás o futebol, o serviço militar que fez dele um marinheiro e a paixão pela música clássica e pela fotografia. Como monge queria chamar-se Paulo, mas a mãe disse que preferia António e o filho acedeu, mas impôs-se: “Não o de Lisboa, mas o do deserto.” E para sempre ficou Antão, um dos mais célebres eremitas que viveram no deserto egípcio, no século III d.C., e serviram de inspiração aos cartuxos. Passaram-se 65 anos desde então e o homem manteve o humor andaluz — diz que a partida de Évora é o seu “Cartexit” — e gosto pela imagem — guarda uma máquina fotográfica no bolso do hábito.

Há 30 anos que, como superior da Cartuxa de Évora vive uma vida dupla, de dia à disposição da comunidade, dos operários do mosteiro, das visitas. “O dia é para os homens, a noite para Deus”, afirma. Antão quase não dorme: “Os outros dizem missa de dia, eu às três da madrugada. E por isso, a oração das três da tarde, um quarto de hora em memória da Paixão de Jesus, tenho de a rezar passeando, pois se me sento, me durmo.” Obrigações que se somam às difíceis tarefas de prior num mosteiro com tão poucos monges. As regras determinam, por exemplo, que sejam os próprios a cuidar do espaço, mas em Évora, onde a comunidade chegou a ter 20 monges nos bons momentos e em média o total rondou uma dúzia, a idade e as doenças limitaram-nos e são alguns trabalhadores e os irmãos leigos que os ajudam.

A rigidez da Ordem é tal que aos candidatos pede-se que procurem um médico para confirmar se têm estrutura física para suportar a interrupção diária do sono, a alimentação frugal, os recorrentes jejuns e o rigor do método. Nem todos os chamados verão abrir-se a porta da clausura. Desequilíbrios emocionais ou psicológicos são motivo de recusa, afinal, situações que no ruído da sociedade poderiam passar despercebidas, na clareza do silêncio assumem ressonâncias preocupantes. São sete os anos de caminhada antes da definitiva consagração à Cartuxa. E os que entram fazem três votos comuns a outras ordens — pobreza, obediência e castidade —, a que têm de somar, os cartusianos silêncio, penitência e contemplação.

Conversas somente com os demais cartuxos e apenas aos domingos, após o almoço, nos dias de festas litúrgicas, e às segundas-feiras, no passeio que os monges dão pelos arredores do mosteiro, em que vão dois a dois, cabendo aos mais velhos escolherem o parceiro entre os companheiros de que menos gostam, como mais uma forma de sacrifício. As visitas são permitidas aos familiares mais próximos e só duas vezes por ano. No mosteiro não há rádio, televisão ou jornais. É o superior que mantém os companheiros a par do que se passa, selecionando o que de relevante aconteceu. E ao mutismo vocal soma-se o silêncio social. Sem distrações, Deus impõe-se na vida dos monges, ocupando todos os espaços e calando a sede espiritual.

Na Liturgia, a língua é muito importante. Quando padre Antão chegou a Évora, antes do Concílio Vaticano II, tudo era expresso em latim; depois, assumiu-se o português e a primeira consequência foi que os irmãos leigos puderam cantar com os padres, sem que as melodias gregorianas tivessem de ser alteradas. Na convivência, o idioma não os preocupa tanto, pois os cartuxos reduziram a sociabilidade ao mínimo, mas uma das características de Scala Coeli é que ali sempre se falou português, ou melhor, “portunhol”, como diz o superior.

Quando chegou a hora de partirem cartuxos para o Brasil para abrir uma nova casa no Rio Grande do Sul, os monges com esta tarefa passaram um ano em Évora para dominar a língua. Assimilar um idioma com pessoas que não falam ou falam muito pouco, deve ser curioso. O superior de Scala Coeli partilha que os monges aprenderam português com os funcionários na vacaria e escreviam “priore” e “não faz male”. Quando os monges quiseram conhecer a ermida do Carmo e pediram ajuda aos rapazes que encontraram no caminho, o resultado custou-lhes algumas dores nas pernas. “O Carmo está perto?”; “Sim, está aberto”, mas só quilómetros mais tarde, chegariam à ermida. É no silêncio que aqueles homens se encontram. “Além de santificador, facilita a vida prática”, garante Antão López.

A cada dia, os monges cartuxos têm oito horas dedicadas apenas à oração

Outra especificidade cartusiana é que os monges falam dos homens a Deus e não de Deus aos homens. “Oração, amor, eis a nossa vida, vida útil à Igreja pelo exemplo e pela intercessão”, ensina. Mesmo com tanto distanciamento, o impacto cartusiano na comunidade é tão efetivo que o superior de Scala Coeli acostumou-se a ouvir que “os arcebispos diziam na cidade preferir ter seis padres, mantendo aberto em Évora o único mosteiro masculino de Portugal, a ter seis coadjutores nas paróquias”. Durante as mais de cinco décadas que esteve no Alentejo, passaram por Antão cinco arcebispos, que diz terem sido sempre entusiastas da Cartuxa. Gostavam de visitá-los e de cantar as Vésperas com os monges e não faltavam às efemérides da Ordem, para as presidir e prestigiar. Queridos da comunidade, aos domingos, às dez da manhã, os cartuxos celebravam uma missa, fora da clausura, para vizinhos e amigos que chegavam a vir de longe só para com eles comungar a fé.

Inseriram-se tão bem na região que nem o 25 de Abril lhes causou distúrbios. “Respeitámos e fomos respeitados. À condessa de Vil’alva, como em todo o Alentejo, ‘ocuparam-lhe’ as terras; a nós, não nos tocaram”, conta, recordando que se alguma vez o automóvel do mosteiro, carregado de homens com hábitos brancos, atravessava uma estrada cortada por piquetes de homens armados, a resposta foi sempre a mesma: “São os irmãos, passem.” Diz até que certa vez, “um comunista comprou à Cartuxa uns bezerros charoleses e dias depois, voltou com amigos. ‘Venham ver uma ‘cooperativa’ bem levada’, disse então. A que um dos monges respondeu: ‘Nós também temos tudo em comum, o hábito que levo hoje deixou-me um irmão.’”

Os episódios demonstram que o sacrifício da solidão assumida pelos monges não é a base da Ordem, mas um facilitador do objetivo final de alcançar um nível muito profundo de oração. Uma solidão que faz da Ordem a mais austera da Igreja Católica e, como não podem trabalhar para se sustentarem, os monges devem gastar o menos possível. Tanta renúncia não se pode, contudo, transformar num obstáculo à oração. “Não é preciso ir a prostíbulos para saber que existem. Ou clínicas de aborto. Desconhecemos e conhecemos. Acho que conhecendo o mundo será mais difícil amá-lo. Mas basta pedir a Deus por ele”, garante o superior de Scala Coeli.

VÉSPERAS DA SANTÍSSIMA VIRGEM, 16H

Chega o momento de agradecer ao Senhor o fim do dia e dos trabalhos nas orações do fim da tarde. Antes dos Angelus, mais um momento de leitura da palavra de Deus. Entretanto, pode fazer-se uma frugal refeição, ainda mais leve do que o almoço. O circuito do dia aproxima-se do encerramento, altura de balanços. E questionado sobre o início da sua história em Évora, a memória transporta padre Antão ao início de tudo.

As refeições são muito frugais, sempre sem carne vermelha, e feitas solitariamente dentro de cada cela

Chegou em 1964 e cinco anos mais tarde, Scala Coeli abriu-se ao noviciado, a que aderiram seis candidatos, que chegaram aos votos solenes. Mas a seguir, diz o superior do mosteiro alentejano, “o frio pós-conciliar [Concílio Vaticano II] diminuiu as entradas”. Mesmo assim, todos os anos continuaram a aparecer novos candidatos, mas ao escasso ritmo de um a um e “essa solidão, acrescida à da cela, dificultou-lhes a perseverança”. Em 1985, a estabilidade parecia um dado adquirido e a comunidade fundadora entregou a direção de Scala Coeli aos portugueses que ali se tinham formado. E, mais uma vez, padre Antão partilha os bastidores da Ordem. “Na Cartuxa não há ‘campanha eleitoral’, pelo contrário, é frequente que o eleito não aceite a carga, pois além de ser pai da comunidade, o prior é o public relations, e portanto, meio cartuxo. Mas os espanhóis que os tinham formado queriam-nos e confiaram neles.”

As lideranças do mosteiro foram entregues aos portugueses, mas na opinião do atual superior, eram “santos religiosos, mas na trintena da idade e sem experiência do mundo”. As consequências não tardaram. Enganados, os cartuxos portugueses quase levaram Scala Coeli à falência: “Em 1989, a Casa não podia pagar os empréstimos aos bancos e a Ordem viu-se na necessidade de liquidar e fechar.” Desde o renascimento em 1960, foi a primeira ameaça de encerramento. Em causa estavam investimentos desastrosos e desadequados, como o sistema de rega em terra ocupada por gado. A solução foi devolver a direção da comunidade aos espanhóis e o escolhido para atravessar as dificuldades do Grande Deserto cartuxo de Évora foi Antão López. “Deixaram-me de superior com outros quatro monges a preparar o que em 2019 estamos preparando.” Ou seja, se o padre espanhol não tivesse agarrado o mosteiro, os cartuxos teriam partido 30 anos antes.

A urgência fê-lo agir. “Tinha conhecido o sr. conde de Vil’alva e telefonei à viúva. Pedi-lhe uns milhões e respondeu-me que enviava um cheque. Comentei-lhe que os juros diários eram altos e que não demorasse. Retorquiu: agora mesmo.” A condessa salvou Scala Coeli. A quinta ficou a cargo da Fundação Eugénio de Almeida e o mosteiro dos monges. E a tradição milenar voltou a impor-se, com os leigos a resolverem os problemas económicos e os religiosos a cumprirem uma vida modelar, reconquistando noviços.

Mas a paz não foi feita para durar e em 2011, como já sabemos, a crise voltou a bater-lhes à porta, mas por outros motivos. “Não era apenas aqui que os noviços não perseveravam, era igual em toda a Europa e por isso, a Ordem viu-se obrigada a retirar os monges que estavam em Évora.” Passados 22 anos dos problemas financeiros, o Capítulo Geral voltaria a determinar o encerramento de Scala Coeli, desta vez devido à escassez de vocações. E padre Antão aproveita para acrescentar mais alguns detalhes: a sabedoria cartusiana de mais de 900 anos determina que uma decisão seja confirmada, dois anos depois, na reunião seguinte, e o tempo de espera deu espaço aos monges de Évora para agir. “Como prior, acudi em 2013. Não desobedeci, só convenci com dois argumentos: a importância transcendental de Scala Coeli para Portugal e a perfeição, exatidão e totalidade com que, mesmo poucos, seguíamos a santa vida cartusiana.” Na reta final da vida, Antão e os companheiros assumiram, o mais duro desafio que os poderia esperar, resistindo por ele oito anos.

A quinta onde o mosteiro está inserido tem 80 hectares, 50 de pasto e 30 de vinha. Os vinhos ali concebidos são célebres e, apesar do desaparecimento dos monges, a marca Cartuxa está registada no Instituto Nacional da Propriedade Industrial a favor da Fundação Eugénio de Almeida e continuará a ser usada nos mesmos termos. Como a cave, que, com acesso apenas do exterior, abriga meio milhão de garrafas de vinho, que ali dormem durante dois anos. Mas nada disso respeita aos monges, somente à fundação, presidida pelo arcebispo de Évora.

Em redor do claustro, estão as celas, os desertos individuais de cada monge. À porta de cada ermo, como lhes chamam os cartuxos, mais um sinal da histórica presença dos espanhóis: uma figura do coração de Jesus, a que do outro lado da fronteira chamam detentes (detém-te) e é dirigida ao demónio, para que não entre na habitação. Na biblioteca, oito mil livros em várias línguas, quase todos de carácter religioso, poucos de índole cultural, histórica ou de literatura clássica. Em 1960, os sete cartuxos que vieram reabrir o mosteiro, trouxeram livros da Ordem, em latim e francês, mas depois de instalados em Évora, quando quiseram adquirir obras religiosas em português, perceberam que não seria fácil e pediram-nas ao Brasil. O despojamento caracteriza a Ordem Cartusiana, com exceção dos livros. Talvez por isso, mesmo antes de os monges partirem, os livros do coro — um dos quais um antifonário (livro litúrgico com as diversas partes do ofício cantado) de 90 por 60 centímetros — foram enviados para Montalegre. Além da biblioteca, não têm muito mais para deixar; tudo o que havia foi roubado em 1834. Mais de 100 quadros. Ficaram os retábulos das duas igrejas, que não podiam ser arrancados.

MAPA INTERATIVO DAS CARTUXAS NO MUNDO A Ordem Cartusiana está a mirrar na Europa, mas revela vitalidade noutras partes do mundo. Neste mapa o leitor encontra todos os conventos contemplativos masculinos da Ordem e pode fazer zoom para ver a localização exacta de cada um

Nem tudo é extinção e as dificuldades não acontecem apenas em Portugal. A Ordem Cartusiana está a mirrar por toda a Europa, mas a geografia cartuxa revela uma surpreendente vitalidade na América do Sul e na Ásia, com destaque para a Coreia do Sul. Na Europa, resistem três mosteiros em França e três em Espanha, dois em Itália, um na Suíça, um na Alemanha, na Eslovénia e outro em Inglaterra. Também os Estados Unidos têm um mosteiro, assim como o Brasil e a Argentina. No total são cerca de 300 os monges. Os maiores mosteiros são a casa-mãe — a Cartuxa original fundada por São Bruno, em França — e o mosteiro na Alemanha, cada uma com 28 monges. Segue-se Inglaterra, com 23 monges, e dez cartuxas terão entre 11 e 20 homens. Na Itália e na Eslovénia não passam de dez religiosos por mosteiro, e, com o contributo de Évora, a casa nos arredores de Barcelona chegará a 12 homens.

No fim de 2018, a Cartuxa argentina tinha seis noviços em formação e outros tantos em Portes (França), mais cinco no Brasil e cinco em Inglaterra. A Alemanha estava a formar mais três e a Itália tinha dois noviços. Os mosteiros cartusianos são mesclas de nacionalidades. Só por Scala Coeli passaram alemães, franceses e um suíço, que vieram para aprender a língua, e um inglês e um norte-americano e um italiano ali morreria, porque o mosteiro tem o melhor clima da Ordem.

E, apesar das restrições de padre Antão à excessiva emotividade dos portugueses para abraçarem a severidade cartuxa, o mosteiro espanhol de Porta Coeli, em Valência, é liderado por um português. Um jovem monge de 47 anos, que, numa atitude rara, respondeu às perguntas do Expresso sobre o encerramento de Évora. Frei Luís Maria Nolasco conta, por escrito, o que Scala Coeli tem de especial: “Um intenso espírito de família e de fraternidade entre os seus monges, sem dúvida favorecido pelo reduzido número da comunidade.” E partilha mais um segredo do mosteiro português, o rosário rezado em comum pelos quatro monges na Capela de Nossa Senhora de Fátima, antes do recreio de domingo.

Outra exclusividade alentejana apontada pelo superior de Valência é a relação do mosteiro com o mundo exterior, “seja pelo número de pessoas que chamavam para pedir orações, seja pelas que acudiam cada domingo à Santa Missa celebrada fora da clausura por um dos padres cartuxos, seja pelo número de artigos de imprensa, de reportagens de rádio e televisão que se foram realizando ao longo dos anos nessa cartuxa e que não tem comparação com nenhuma outra Casa da Ordem.” Mas o que parece uma mais-valia pode ser considerado um obstáculo de acordo com a forma cartusiana de pensar. Com a cidade ao virar da esquina, Scala Coeli não corresponde à definição estrita de um ermo, inquietando alguns monges desejosos de ainda maior solidão. Frei Luís Maria Nolasco diz-se “profundamente triste” pelo encerramento da única Cartuxa do país e que para Portugal a perda “significa um grande empobrecimento espiritual, uma diminuição da eficiência apostólica”.

Quem conhece de perto os último anos vividos pelos monges em Évora é o diácono Paulo Fonseca, 52 anos, que durante quatro anos viveu na Cartuxa. Nascido em África, chegou a Portugal com 18 anos, estudou Economia em Lisboa e, conta ao Expresso numa sala do lado de fora do mosteiro em Évora, era “um cristão de ocasião”, que frequentava as igrejas apenas em casamentos e batizados, até que confrontou-se com as mensagens de São Francisco e Santo Agostinho. Tentou ser franciscano, mas aconselharam-lhe uma experiência cartusiana. Padre Antão López era o mestre-noviço e Paulo Fonseca diz que, durante a sua permanência em Scala Coeli, experimentou “liberdade, alegria e verdade”. Foi obrigado a sair da zona de conforto e, “sem as distrações do mundo”, viu-se frente a frente com os seus demónios. Mas percebeu que aquele também não era o seu território. Ainda passou um ano no mosteiro de Burgos e acabou por decidir ser pároco. Depois de ter deixado a Cartuxa, completou a formação no Seminário-Maior de Évora e será ordenado justamente no âmbito das cerimónias de despedida dos últimos quatro monges de Scala Coeli. “Ali nunca me senti sozinho. A experiência cartusiana transcende as palavras e emociona-me falar na partida dos monges, porque perde-se o vínculo com uma Ordem que nos mostra que a vida não se resume às coisas materiais”, conclui.

ANGELUS-COMPLETAS, 18H45, DEITAR-SE, 19H15

O fim aproxima-se. Entre o aviso de 2011 e a decisão deste ano, os quatro cartuxos aproveitaram para embelezar a Cartuxa — “limpou-se, pintou-se, iluminou-se, completou-se tanto o edifício como o complexo artístico que alberga”. Padre Antão sai com a consciência de dever cumprido: “Pensamos que fica não apenas a memória de um passado, mas uma presença eterna.”

O monge José Maria, 91 anos, já não consegue atravessar sozinho os corredores do claustro e precisa de utilizar uma cadeira de rodas elétrica

O arcebispo de Évora, Francisco Senra, anuncia ao Expresso que o mosteiro deverá ser ocupado por outra comunidade contemplativa, “provavelmente feminina”. Mas diz que as consultas ainda decorrem, porque quem vier terá de se adaptar às condições de um edifício do século XVI, “com características muito próprias para a vida cartusiana”. Mas garante que aquele continuará a ser “um espaço exclusivamente monástico, ainda que possa vir a acolher na hospedaria, pessoas que desejem fazer alguns dias de experiência de vida contemplativa”.

O ponto alto das cerimónias de despedida acontecerá a 8 de outubro, quando às 18h30, os portões do mosteiro se abrirão à comunidade e na igreja renascentista de Scala Coeli será celebrada uma missa de adeus dos monges. Depois, os mil quilómetros que os separam da nova casa deverão ser feitos em duas partes, com uma noite de sono em Madrid, “por causa dos mais velhinhos”. De longe, os quatro homens ficarão à espera de notícias de Scala Coeli, ansiando que o edifício não seja transformado em nada distinto de uma casa religiosa. E desejando que algo deles permaneça. Padre Antão conta que na Cartuxa de Jerez, agora habitada por outra Ordem, a inscrição da entrada homenageia quem já não lá está, podendo ler-se a inscrição “Monastério de Belén/Cartuja de La Defensión de María”.

Está já próximo o momento em que Antão López poderá regressar ao silêncio. “Serei um cartuxo normal, sem contacto com o exterior; já era hora... sinto necessidade. E ainda por cima, este sprint final vai matar-me...” Viu vários monges morrerem dormindo e queria ter o mesmo fim. “Há muitos anos preparo-me cada noite para que me aconteça isso. Adormeço feliz e acordo com pena. A terra, nem sequer na Cartuxa, pode comparar-se com o Céu...” E partilha as suas palavras mais íntimas: “Senhor, fazei comigo o que quiserdes.” Mas o Deus de Antão ainda não o ouviu. Há alguns anos, pensou que chegara a hora. “Tive algo assim como um enfarte. Doeu-me fortemente o coração e o lado esquerdo, durante o que me pareceu um quarto de hora, mas seria muito menos. Estava na cama e fiquei imóvel, repetindo a frase. O cardiologista disse-me depois: ‘Outros saltam assustados e caem mortos, a sua imobilidade, salvou-o.’ E aqui estou, não sei até quando, mas esperando que não tardará o dia feliz.”

Até lá, o que estes homens levam, já se sabe. E do que não conseguirão se esquecer? “Há 55 anos que cheguei, mas entre 1972 e 1977, fui mestre de noviços numa cartuxa francesa. Ali falei em francês com os homens, mas falava em português comigo e com Deus, como sempre fiz aqui. A oração litúrgica tinha de ser em francês, mas o meu terço era em português. E o será em Espanha. Já me custa falar espanhol. Se isso não é saudade...” Quem diria que o superior cartuxo seria tocado pela emoção portuguesa? O tempo cartusiano é circular: começa a contar quando se atravessam os portões e a palavra clausura fica-lhe pelas costas, como a cruz carregada, e fecha-se quando regressam à terra, e a campa é coberta pela cruz de ferro. Depois, não haverá tempo, apenas a eternidade. E quando se cerrarem as portas da Cartuxa de Évora, o silêncio monástico será substituído pelo ruidoso vazio.

 

TESTO CHRISTIANA MARTINS

FO†OGRAFIA ANTÓNIO PEDRO FERREIRA

VÍDEO E EDIÇÃO JOSÉ CEDOVIM PINTO

INFOGRAFIA SOFIA MIGUEL ROSA

WEB DESIGN TIAGO PEREIRA SAN†OS

WEB DEVELOPER MARIA ROMERO

COORDENAÇÃO EDITORIAL JOÃO CARLOS SANTOS E JOANA BELEZA

DIREÇÃO JOÃO VIEIRA PEREIRA

© EXPRESSO - IMPRESA PUBLISHING S.A. 2019

Artigo publicado no Semanário Jornal Expresso.

 

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Coordenador
Marta Milheiro
   
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