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Clarice: uma mulher, uma pessoa, uma atenção

15-12-2017 - Catarina Fernandes

Clarice Lispector nasceu na Ucrânia a 10 de dezembro de 1920 e morreu no Brasil a 9 de dezembro de 1977. Foi jornalista e escritora exímia, deixando um vasto baú de escolhas, para todos os gostos: romances, crónicas, ensaios, contos, correspondências, livros infantis, traduções. Clarice, com o perdão da palavra, reconhece que é um mistério para si própria. Nós também o reconhecemos, mas recebemos esse mistério com o assombro de querer, se não desvendá-lo, pelo menos de, nele, mergulhar.

Como todo o escritor adulto, Clarice foi uma criança abençoada com o dom da fantasia e da imaginação, levando a menina leitora a crer que os livros eram “como árvore, como bicho: coisa que nasce”. Quando descobriu que, na realidade, existia um autor, por detrás desses bichinhos mágicos, decidiu que também queria sê-lo. Começou então a escrever para revistas e jornais e, apesar, de reconhecer-se tímida (mas ousada), chegava nas revistas e perguntava: “eu tenho um conto quer publicar?”

O seu primeiro romance, “Perto do Coração Selvagem”, é publicado em 1943, e causa espanto na crítica, com uma prosa intimista que reflete as novas tendências, que começam a surgir na literatura brasileira, com o aproximar do fim da Segunda Grande Guerra. Apareciam já, neste primeiro livro, as marcas daquele que seria o estilo da escritora, a integração na prosa de elementos considerados, até aí como pertencentes ao mundo poético: metáforas; paradoxos; antíteses e figuras de linguagem.

Um dia, depois de viver sem tédio muitos iguais, viu-se diferente de si mesma. Estava cansada. Andou de um lado para outro. Ela própria não sabia o que queria. Pôs-se a cantar baixinho, com a boca fechada. Depois cansou-se e passou a pensar em coisas. Mas não o conseguia inteiramente. Dentro de si algo tentava parar. Ficou esperando e nada vinha para ela. Vagarosamente entristeceu de uma tristeza insuficiente e por isso duplamente triste. Continuou a andar por vários dias e seus passos soavam como o cair de folhas mortas no chão. (…) Na verdade ela sempre fora duas, a que sabia ligeiramente que era e a que era mesmo, profundamente.

“Perto do coração Selvagem: Rocco, 1944”

Considerada como uma das suas obras mais difíceis, e, talvez, por isso mesmo, um dos mais aclamados romances pelos críticos, “A paixão segundo G.H” aproxima-nos do lado animal de Clarice, da sua vontade de imergir na natureza física do que a rodeava, e na compreensão da natureza animal, no humano. A mítica cena em que a personagem principal decide saborear a barata que acabara de matar mostra a vontade de se libertar daquilo que a tornava humana, através de uma experiência que considerava asquerosa e selvagem. Uma obra esplêndida que mostra a capacidade imaginativa de Clarice, onde se misturam temas que a acompanham, como a filosofia, o existencialismo e a misticidade.

“ Não contei que, ali sentada e imóvel, eu ainda não parara de olhar a barata com grande nojo, sim, ainda com nojo, a massa branca amarelecida por cima do pardacento da barata. E eu sabia que enquanto eu tivesse nojo, o mundo me escaparia e eu me escaparia. Eu sabia que o erro básico de viver era ter nojo de uma barata. Ter nojo de beijar o leproso era eu errando a primeira vida em mim — pois ter nojo me contradiz, contradiz em mim a minha matéria.”

“A paixão segundo G.H”: Rocco, 1998

Clarice não queria passar pela “terrível limitação de quem vive apenas do que é passível de fazer sentido, queria uma verdade inventada”; e, por isso, a escrita de romances não lhe eram suficientes, escrevendo por necessidade porque quando “não escrevo estou morta”; apontava ideias que lhe surgiam durante o dia, escrevia histórias infantis a pedido dos filhos, que depois viraram livros para todos os outros filhos de alguém.

Para os fãs de Clarice, para além dos romances, são um prato cheio as muitas crónicas e entrevistas que ela realizou ao longo da sua vida. Crónicas publicadas no “Jornal do Brasil”, que estão condensadas num maravilhoso volume, “Aprendendo a Viver”, que dão uma Clarice menos   hermética   aos leitores e onde são apresentadas uma série de discussões sobre o quotidiano e sobre as grandes questões da vida. São estas que permitem conhecer a Clarice dona de casa, mãe, amiga, a criança, a mulher que procura deus e procura a explicação de si na Natureza.

Uma casa de família é aquela que, alem de nela se manter o fogo sagrado do amor bem aceso, mantenham-se as panelas no fogo. O fato é simplesmente que nós gostamos de comer. E sou com orgulho a mãe da casa de comidas. Além de comer conversamos muito sobre o que acontece no Brasil e no mundo. Nós somos um lar.

“Aprendendo a viver”: Rocco, 2004

Para além de conhecermos, um pouco, mais de Clarice nas suas crónicas, é também, nas diversas entrevistas, que realizou aos seus contemporâneos, que lhe entrevemos o espirito sagaz, iluminado, o humor. As suas entrevistas são verdadeiras conversas filosóficas, existencialistas e até poéticas com os seus entrevistados, desde Vinicius de Moraes, Tom Jobim, Elis Regina, Erico Verissimo, Ferreira de Gullar, Jorge Amado, Rubem Braga, e muitos outros grandes mestres que nós tivemos a sorte que se juntassem a Clarice para nos maravilhar.

Termino, tentado responder às três perguntas clássicas de Clarice Lispector, nas suas entrevistas:

Qual é a coisa mais importante do mundo?

Possuir o deslumbramento pelas coisas simples.

Qual é a coisa mais importante para a pessoa como indivíduo?

Ter a liberdade para ser bom.

E o que é amor?

Talvez seja dar. E dar-se. Independente de tudo. Apesar de tudo.

Fonte: Comunidade Cultura e Arte

 

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