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Nobel para um escritor a tempo inteiro

13-10-2017 - Diogo Vaz Pinto

Kazuo Ishiguro não estava entre os favoritos para o prémio da Academia Sueca. Ainda assim, há quem garanta que o Nobel ficou mais bem entregue este ano do que no ano passado. Vargas Llosa considera-o «um escritor magnífico».

S empre que é chegado o dia do anúncio do Nobel da Literatura, aqueles que ainda metem dinheiro ou seguem por diversão a estranha corrida de galgos têm os seus favoritos. Kazuo Ishiguro claramente não estava na lista de muitos. O escritor britânico de origem nipónica foi uma surpresa apenas porque parece ter saído de um ângulo morto. Ainda que nos ativéssemos apenas a outros escritores da Grande Ilha, nomes como Ian McEwan, Salman Rushdie, Julian Barnes, St Aubyn ou Martin Amis seriam apostas mais seguras. O facto é que, se Ishiguro é indiscutivelmente um bom escritor, ao lado de tantos dos candidatos tradicionais que compõem o clube dos desprezados pela Academia Sueca, parece que foi preciso arranjar-lhe um banco para ficar à altura destes.

Este ano, e depois da tão polémica atribuição do prémio a Bob Dylan, o Nobel foi para Ishiguro e para os seus «romances de grande força emocional, que revelam o abismo da nossa ilusória sensação de conforto em relação ao mundo».

Com uma escrita «marcada por uma expressão cuidadosamente contida, independentemente dos acontecimentos que retrata», o autor de 62 anos mudou-se aos cinco com a família do Japão para o Reino Unido, quando o pai foi aceite como investigador no National Institute of Oceanography, em Southampton. Educado numa escola de rapazes em Surrey, após ter-se licenciado em 1978 com uma especialização em língua inglesa e filosofia na Universidade de Kent, na Cantuária, trabalhou como assistente social nos bairros mais pobres de Londres. Em 1980 obteve um mestrado em escrita criativa pela Universidade de East Anglia e, três anos depois, foi incluído na lista de melhores jovens escritores britânicos organizada pela Granta, a par de Martin Amis, Ian McEwan e Salman Rushdie.

O comité do Nobel adiantou no Twitter que Ishiguro tem mostrado uma certa propensão para temas relacionados com a falibilidade da memória, o tempo e as ilusões que alimentamos para suportar a vida. Após o anúncio, a secretária permanente da Academia Sueca Sara Danius deu uma curta entrevista difundida em direto em que sublinhou o facto de a Academia distinguir este ano «um escritor de grande integridade» que «desenvolveu um universo estético só seu». «Kazuo Ishiguro está muito interessado em compreender o passado. Não para o redimir, mas para revelar o que temos de esquecer para sobrevivermos enquanto indivíduos e enquanto sociedade». A porta-voz do júri confessou ainda que o seu romance preferido do autor é o mais recente dos que publicou, O Gigante Enterrado (2015), «uma verdadeira obra-prima que começa como uma comédia de costumes de P.G. Wodehouse e acaba num registo kafkiano».

Num tom que já de si denuncia a queda da Academia por uma obra cuja originalidade nasce de um sortido de diversas influências, Danius indicou que, além de Kafka, Jane Austen é outra das referências mais notórias na escrita de Ishiguro, acrescentando que para obter a receita completa desta será preciso ainda «acrescentar um pedacinho de Marcel Proust e depois agitar, mas não muito». Se Austen viveu em tempos em que Estocolmo não tinha as menores pretensões de ter uma palavra a dizer no que toca à glória literária, é curioso o facto de Proust e Kafka serem dois dos tantos autores incontornáveis que não receberam o Nobel.

A porta-voz adiantou ainda que, depois das divisões e da polémica do ano passado, esperava que a escolha deste ano fizesse «o mundo feliz». Mas apressou-se a garantir que a Academia teve apenas como critério a distinção de um «romancista que julgamos ser absolutamente brilhante».

Como se sabe, a Academia pagou caro o preço de ter tentado colar-se a Dylan. Este mostrou-se um vencedor relutante, esquivo, e levou o comité à exasperação, com Per Wastberg, um dos membros do júri, a descrever Dylan como «indelicado e arrogante» depois de se ter mantido incontactável durante dias a seguir ao anúncio, para o aceitar finalmente de forma lacónica, não comparecendo depois à cerimónia de entrega do prémio em Estocolmo.

Em declarações à BBC, Ishiguro disse que a atribuição do prémio era «uma magnífica honra – acima de tudo porque significa que estou a seguir as pisadas dos maiores autores que já viveram». Num comunicado divulgado posteriormente pelo seu editor, o escritor não deixou de encarar a responsabilidade do prémio: «Só espero que, ao receber esta honra imensa, possa, mesmo que de uma forma modesta, encorajar as forças que se posicionam do lado do bem e da paz neste momento».

Depois da publicação do seu primeiro romance, As Colinas de Nagasaki (1982), Kazuo Ishiguro «tem sido um escritor a tempo inteiro», sublinhou a Academia Sueca. Longe de ser um autor prolífico, os romances publicados ao longo de 35 anos adoptam muitas vezes uma narração na primeira pessoa, narradores não fiáveis, que frequentemente estão em negação face a verdades que o leitor vai descortinando aos poucos. À semelhança do que viria a acontecer na sua segunda obra, Um Artista do Mundo Transitório (1986), editada em Portugal pela Livro Aberto, o romance de estreia tem a sua acção na cidade onde o escritor nasceu (Nagasaki) em 1954, alguns anos depois da Segunda Guerra Mundial e da devastação provocada pela bomba atómica dos EUA.

Numa entrevista concedida ao Público, em 2005, Ishiguro falou de como o marcou ter nascido numa cidade onde as cicatrizes da guerra eram tão visíveis: «Acho que todos tememos uma coisa como a bomba atómica, só que eu nasci em Nagasáqui e aprendi o que isso quer dizer de uma maneira diferente da maioria das pessoas. A minha desconfiança na ciência e na capacidade que a sociedade humana tem para gerir as suas próprias descobertas está provavelmente enraizada nesse facto».

Entre os nove livros do autor, incluem-se Os Despojos do Dia, livro com o qual venceu o Booker Prize, em 1989 e que foi adaptado ao cinema em 1993 por James Ivory, com Anthony Hopkins e Emma Thompson como protagonistas. Nunca me Deixes (2005), um romance distópico, também foi adaptado ao cinema, em 2010.

A Relógio D’Água publicou em 1989 As Colinas de Nagasaki. Desde então, a obra do autor tem sido dada a conhecer ao público português pela Gradiva, sendo Nocturnos (2009) e O Gigante Enterrado (2015) os dois livros mais recentes do autor.

Ishiguro escreveu ainda Os Inconsolados (1995, vencedor do Cheltenham Prize) e Quando Éramos Órfãos (2000).

Entre as reacções, merece destaque a de Mario Vargas Llosa, que fez um melhor trabalho do que o comité em justificar a razão porque Kazuo Ishiguro merecia o Nobel: «É um escritor magnífico, de clara raiz japonesa, ainda que perfeitamente integrado tanto na literatura inglesa como na sociedade britânica. Um exemplo perfeito dessa integração é Os Despojos do Dia, romance no qual, com grande delicadeza, aborda os rituais da aristocracia britânica, vista com enorme subtileza e espírito crítico por um mordomo dotado de grande perspicácia. É uma delícia de romance, que introduz o leitor nesse mundo inglês com grande destreza narrativa».

Vargas Llosa aproveitou ainda para saudar a Academia por ter retomado a sobriedade das suas funções enquanto júri de um prémio literário: «[Ishiguro] é, sem dúvida, um prémio melhor do que o dado no ano passado a Bob Dylan e valoriza um romancista de primeira linha na tarefa de renovação da literatura em língua inglesa, e sobretudo a britânica, abordada por excelentes narradores destas últimas décadas aos quais ele pertence».

Artigo escrito por Diogo Vaz Pinto no Jornal i

 

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