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Notícias e Opinião do Concelho de Almeirim de Portugal e do Mundo
 

ENCICLOPÉDIA DOS MIGRANTES

09-06-2017 - N.A.

Lançamento a 30 de maio

É uma herança do latim e diz-se - “migrante” - daquele que muda de país ou região. Processo tantas vezes presenciado pela associação Renovar a Mouraria, que se associou à Câmara Municipal de Lisboa para concretizar um projeto experimental e artístico que quer “reconhecer o lugar das pessoas migrantes e contribuir para a história e a memória das migrações. ”

A ideia foi de Paloma Fernández Sobrinho e, da cidade francesa de Rennes ao território ultramarino de Gibraltar, havia de ligar 15 parceiros de europeia cooperação. Com início em 2014, recolheram-se 400 histórias, no formato de cartas aos mais queridos dos entes, para uma enciclopédia impressa em três tomos de nove quilos, de 2.000 páginas em quatro línguas. Um exemplar fica disponível para consulta na edilidade, onde acontece também a entrega solene, dia 30 de maio às 19h, na Sala do Arquivo dos Paços do Concelho .

E torna-se património da cidade, como as histórias de sete pessoas que entrevistámos – como o contributo de quem migra.

Andanças de um beduíno

Mourad Ghanem (Argélia)

Define-se como “beduíno”, de tal forma assimilou o estilo de vida nómada. “Eu fiz quase 16 anos na Argélia, passei 11 na França, nove em Espanha e já são oito em Portugal. Agora estou cada vez mais tempo em África, no Senegal, concretamente, e depois quem sabe…” Na sua carta ao primo, Mourad Ghanem (1973) revela “o sonho, que até é mais um projeto, de criar uma república para os trinacionais, quadrinacionais ou até mesmo pentanacionais. Mas também aceitaríamos aqueles que só têm uma nacionalidade, pobrezinhos”, adianta com humor. Tudo partiu do conceito de “binacional, e é uma reação a um debate atual, sobre nacionalidade, que não me parece muito são. Há um problema identitário, artificial e manipulado, criado por políticos, para se promoverem e alcançarem o poder. O mundo neste momento não é muito amável para as pessoas que vivem sem fronteiras.” Nestas andanças, dedica-se ao desenvolvimento local, foi presidente da rede Bairros, e trabalhou “com a equipa do António Costa no desenvolvimento da Mouraria e do Intendente. Sou principalmente formador, consultor, facilitador de processos para comunidades e organizações não-governamentais. Como viajo muito, estou sempre a ver boas práticas, experiências e inovações que se podem partilhar noutros sítios.”

A culpa foi do Carlos Paredes

Kaisa Masso (Estónia)

A culpa é toda de Carlos Paredes: o tema “Verdes Anos” mexeu de tal maneira com Kaisa Masso (1985) que a levou a marcar a viagem. Primeiro de férias, depois por uma temporada mais alargada, para estudar na Universidade Nova, até ao dia em que se decidiu a perder o voo de regresso à sua Tallinn natal e estabelecer-se definitivamente em Lisboa. Sempre lhe agradou a proximidade com o mar mas o que mais a surpreendeu foi o lado caloroso dos portugueses. “Os nórdicos gozam sempre com as pessoas do sul, que estes não trabalham tanto como eles” escreveu na missiva ao pai, mas “dedicam-se uns aos outros, estão mais tempo juntos, enviam mensagens mais compridas e fazem telefonemas mais frequentes. (…) Mesmo os estranhos, ajudam-me imenso.” Desde 2007 em Lisboa, tem colaborado com várias instituições na área da cultura como o DocLisboa, a companhia de teatro Cepa Torta, e acabou por criar há três anos a sua própria “escolinha Piano Animado”. Entretanto, ainda arranjou tempo para escrever o livro “Meu Portugal” para uma série de viagens da editora Petrone Print, um bestseller na Estónia e de que já se fala para uma segunda edição. Como o genial guitarrista que aqui a trouxe, agora é Kaisa a levar o nome de Portugal mais além.

Trocar Cuba por Lisboa

Vladimir Vaz (Cabo Verde)

Ele queria mesmo era ir estudar para Cuba mas a mãe decretou o “embargo”, recomendou a Europa e Vladimir Vaz (1981) viu um aliciante no universo das capas negras de Coimbra. Mas ainda não era bem a Agronomia que lhe estava destinada e acabou em Lisboa a cursar Direito. O que mais lhe custa suportar é a saudade dos amigos, a quem dirigiu as suas linhas, e planeia regressar a Cabo Verde no longo prazo, para levar o que aprendeu e ajudar a fazer a diferença entre os seus. Mas entretanto, diz ter encontrado em Lisboa o melhor de dois mundos: a abertura de uma cidade global e uma comunidade cabo-verdiana que o faz sentir em casa. E tem-se ocupado a ser útil aos demais: “já há três anos que dou apoio jurídico a refugiados e emigrantes, por forma a facilitar o acesso à educação, à justiça e à saúde. Já fiz mais de 2.000 atendimentos; às vezes é frustrante porque nem sempre conseguimos, mas é muito recompensador quando vemos uma criança que consegue ter acesso ao ensino, um trabalhador a sair de uma situação de exploração laboral, uma pessoa que já cá está há 20 anos a receber finalmente o título de residência... Formas de direitos fundamentais, consagrados mas ainda não totalmente efetivados.”

Visitas para mudar mentalidades

Filomena Farinha (Angola)

Admite ter sentido o preconceito (“por ser mulher, por carregar o sotaque brasileiro”) mas não quer que seja isso a definir a sua história. Antes pelo contrário, a carta que escreveu para a enciclopédia quer ser acima de tudo uma homenagem sentida aos seus pais, que “pegaram nos quatro filhos e tiveram que começar tudo de novo” noutro continente. Filomena Farinha (1966) nasceu em Angola, filha de mãe angolana e pai português (com raízes em Mortágua, zona do Freixo, distrito de Viseu) mas diz que sempre teve “nacionalidade e coração português”. Deu por si na pele de uma “refugiada com nove anos”, no Rio Grande do Sul, e ainda hoje sente gratidão para com os brasileiros que a acolheram vendo “os estrangeiros como uma mais-valia”. A licenciatura em Turismo pela PUC foi reconhecida em Portugal, onde chegou em 1975, e acabou por fundar a sua própria empresa em 2014. A “Estrela D'Alva Tours” (que dirige com o marido Pedro, filho de portugueses nascido na Alemanha), especializada em roteiros à medida para turistas e que tem nos brasileiros (“é uma forma de retribuir o acolhimento deles”, explica) 70% da sua clientela. Como o guia intercultural da Mouraria, um “ migrant tour   que é o que eu posso fazer para ajudar a mudar as mentalidades.”

Viver na Babilónia

Augusto Fernandes (Brasil)

Afirma-se “baiano” antes de ser brasileiro e ainda conta do espanto da descoberta da existência de árvores caducas à saída do aeroporto da Portela. Onde chegou a 8 de abril de 2004, com a namorada natural de Coimbra, que conheceu num espaço cultural em Salvador da Baía. Passados uns anos, uma amiga que sabia que se ajeitava com a máquina fotográfica pediu-lhe umas imagens para o “Mural Sonoro”. Abriam-se também as portas para a colaboração com os projetos “Sou”, “Festival Todos”, “Largo” e o jornal “Rosa Maria” da Renovar a Mouraria. Em 2015, apresentava a exposição “Gente Linda do Intendente”, fruto da proximidade de anos com residentes e comerciantes. “Eu sou bairrista. E descobri o Intendente antes do António Costa” explica, entusiasmado. Ainda trabalhou para a “AR Magazine” e como operador de câmara para o canal televisivo da junta de freguesia de Arroios, para o qual criou e apresentou o programa “Sabores do Mundo” (porque “não há momento mais sagrado no mundo inteiro do que aquele em que a gente se senta à mesa”). Agora freelancer, Augusto Fernandes (1969) concentra-se no projeto Retina Esquerda e continua a registar a multiculturalidade daquela zona de Lisboa: “são 74 nacionalidades no mesmo lugar, eu vivo numa vila que é uma Babilónia!”

Voltar à circum-navegação

Simão Wiliamo (Moçambique)

Malenga é o nome artístico de Simão Wiliamo (1997), artista-plástico, escultor, pintor e músico moçambicano, que veio para Lisboa em “Outubro de 2007, através de uma bolsa, para estudar arte”. Os estudos ainda o levaram ao Porto e depois à Suécia, onde esteve durante ano e meio e começou a aprender a língua. Gaba o lado prático dos suecos mas acha que aquele não era o sítio certo para alguém que vem de Moçambique. “Não era só o frio”, faltavam-lhe “a proximidade e o convívio que, para mim, são muito importantes e se sentem mais aqui. Foi isso que fez voltar e fixar em Portugal.” E foi isso também que o levou a criar uma associação cultural no número 59 da Rua São João da Mata, na zona de Santos. “O Atelier Aberto é um espaço moçambicano em Portugal, para dinamizar a comunidade, mas virado para todo o mundo”, que quer ser de encontro de culturas. “Todas as semanas acontecem coisas diferentes, temos música três dias por semana, sessões de poesia vadia, oficinas de escrita criativa...” Sobre a participação na Enciclopédia dos Migrantes, diz que “valeu a pena porque fica um registo, é uma questão secular, e no futuro as pessoas vão poder ler o que se escreveu agora sobre Lisboa e as pessoas que passam por cá; como nós lemos os relatos das viagens pelo Índico.”

O mundo é de todos

Fátima Ramos (Portugal)

Pode não o ser “strictus sensus”, porque veio ao mundo em Portugal, mas Fátima Ramos (1976) considera-se uma migrante “não só por ter nascido no seio de uma família cabo-verdiana, católica, que mantém as tradições e vive muito ligada à terra natal, mas porque todo o meu percurso de vida está muito relacionado com outras pessoas, que me fizeram saltar para outras culturas. Através do meu casamento, entrei em contacto com a cultura indiana e moçambicana, converti-me ao islamismo, fui a Meca, fui a Medina… E o meu filho é a fusão de todas estas caraterísticas culturais.” É professora de história na Escola Manuel da Maia, em Campo de Ourique (onde as turmas estão cada vez mais internacionais, com alunos da Coreia, do Nepal ou da Bulgária) e planeia usar a Enciclopédia dos Migrantes como ferramenta de trabalho, para explicar “que migrante não é o indivíduo que vem, de forma oportunista, ocupar o país deles; é um indivíduo quem vem à procura de melhores condições de vida num mundo que é de todos.” Nos cursos técnico-profissionais que leciona no IFP “começava sempre por mostrar um quadro da torre de Babel. Nós vamos ver torres destas a serem construídas e destruídas regulamente, é uma caraterística das sociedades. E nós vamos continuar a circular porque sempre foi assim.”

[ por Manuela Costa | fotografias de Humberto Mouco ]

 

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