| ENTREVISTA A NUNO LOPES A propósito de "São Jorge"
03-03-2017 - Ana Figueiredo
São Jorge , de Marco Martins estreia nos cinemas a 9 de março. No filme, Nuno Lopes interpreta Jorge, um boxeur, desempregado que, em desespero, aceita trabalho numa empresa de cobranças difíceis. Com este papel o ator venceu o prémio de Melhor Ator naSecção Horizontes, do Festival de Veneza.
Já tinha trabalhado com o realizador Marco Martins no filme Alice. Como surgiu a oportunidade de interpretar este personagem, em São Jorge?
Eu e o Marco continuámos a trabalhar juntos mas não em cinema, temos uma companhia de teatro, o Arena Ensemble, juntamente com a Beatriz Batarda. Sempre quis fazer um filme sobre boxe e partimos daí. Juntos começámos a pesquisar, a falar com pessoas, a conhecer o mundo do boxe, até que descobrimos o mundo das cobranças e aí decidimos que tínhamos filme.
O Jorge é ficcional, mas ao mesmo tempo muito real. Como se preparou para criar este personagem?
Houve um trabalho de cinco anos em que estive sempre muito perto dos boxeurs, ainda que nos primeiros tempos não fosse tanto um treino físico mas mais uma forma de perceber como é que eles falam, de que tipo de coisas falam. Fizemos a pesquisa dos bairros, acabei por conhecer toda uma Lisboa suburbana da margem sul que não conhecia bem. Depois numa última fase treinava 5 horas por dia no ginásio do Paulo Seco, boxe e crossfit com o David Chan e passei a ir mais intensivamente à Bela Vista (onde o meu personagem vivia) conviver com as pessoas de lá.
Embora viva numa realidade muito dura, esta é uma personagem bondosa. Esta bondade é uma fraqueza ou uma virtude num meio tão hostil?
Acredito sempre que a bondade é uma virtude. Mas quando se vive num meio hostil tem que se esconder essa bondade. É isso que o Jorge faz, acho que ele tem uma capa, cria uma crosta para que não se veja o seu lado bondoso e afetuoso. Muito dificilmente sobreviveria expondo a sua sensibilidade. Uma das coisas que acho interessante neste personagem é a máscara social que ele cria, escondendo aquilo que verdadeiramente é.
O realizador Marco Martins recorreu a pessoas que viviam nos bairros da Bela Vista e da Jamaica para contracenarem consigo no filme. Como foi trabalhar com não atores?
Já o tínhamos feito antes, com uma encenação que eu e o Marco fizemos, nos Estaleiros de Viana só com atores amadores. Os trabalhadores da fábrica, colegas do Jorge, são na verdade trabalhadores dos Estaleiros de Viana. Quisemos que voltassem a trabalhar connosco. O maior desafio era eu não parecer um ator no meio deles e criarmos uma voz única sobre a crise que não parecesse ficcionada. Quisemos que essa voz, esse sentimento e essa maneira de ver os quatro anos da Troika passasse de uma maneira realista para o filme.
A falta de esperança, a resignação, o negrume são marcantes no filme, neste sentido considera que o verdadeiro protagonista do filme é a troika?
São Jorge é conhecido por matar um dragão (é a medalha que usa o meu personagem). Acho que o coprotagonista do filme é o dragão, a austeridade, mais do que a troika . A austeridade existe no filme como os deuses existem na tragédia grega, é uma espécie de destino ao qual não se pode fugir, sobretudo o Jorge, por muito que queira. Lembro-me que enquanto estávamos a fazer o filme e víamos os sucateiros e outros que vivem de apanhar lixo, se dizia na rádio que os portugueses andavam a viver acima das suas possibilidades. Havia claramente um hiato entre estas duas realidades e nós quisemos muito preenchê-lo, mostrando o que se passou com uma família de desempregados. As pessoas afetadas por esta austeridade não tinham rosto, eram números num excel . Quisemos que o Jorge fosse o rosto das pessoas que sofreram com o monstro da austeridade.
O filme mostra-nos como as pessoas vivem nestes bairros. Como foi conviver de forma tão próxima com o dia-a-dia destas pessoas?
As pessoas receberam-nos de braços abertos. O cinema tem essa vantagem, quando se chega a um sítio e se diz “estou a fazer um filme” as portas abrem-se muito facilmente e as pessoas são de uma generosidade enorme. É curioso porque não é a mesma coisa – e sei porque já acompanhei de perto – quando se diz que se está a fazer uma reportagem. As pessoas têm uma imagem mágica do cinema. O Paulo Seco, que me treinou no boxe e que faz também de meu treinador no filme, é um excelente exemplo disso, teve uma participação generosíssima. Em todos os bairros havia duas ou três pessoas fundamentais para nos ajudarem a entrar no ambiente. São pessoas que vivem com muito pouco e que não têm nada a ganhar com uma experiência destas, mas entram de coração no projeto. Isso não esquecerei tão cedo.
O que representou para si o prémio de Melhor Ator na Secção Horizontes, do Festival de Veneza?
Essa é a pergunta mais difícil de responder [risos]. É estranho receber um prémio porque para mim a arte não deve ser competitiva. Mas é um reconhecimento do nosso trabalho. Depois há uma sensação de impotência porque o prémio vem para mim, é só um e eu não o posso distribuir, mas na verdade não é só meu. Este personagem foi construído com o Marco Martins, com o Adolfo, e o Cacá (diretor de fotografia)... O Jorge é muita gente sem a qual não podia existir. Sem o Batata, da Bela Vista, nem o Keller da Jamaica. Quando eu digo isto não é falsa modéstia. Apesar do meu esforço e do meu trabalho, sem todas essas pessoas o Jorge não seria o que foi, não seria suficiente para ganhar um prémio. Espero que a grande vantagem do prémio seja aumentar o interesse das pessoas em ver o filme, porque há uma distância injusta entre o público e o cinema português.
Dedicou este prémio às pessoas que vivem nos bairros da Bela Vista e da Jamaica. Já teve feedback da reação das pessoas com quem partilhou o prémio?
Sim, já tive feedback de algumas pessoas. Ficaram muito felizes e sentiram-se orgulhosos. Sobretudo, em muitos casos, é a primeira vez que falam deles nas notícias por uma razão positiva. Muito particularmente o bairro da Bela Vista que raramente surge nas notícias pelas melhores razões. Muita gente me disse, “finalmente o nosso bairro é falado de uma maneira agradável”, fico muito feliz por também ter ajudado a provocar isso.
[ por Ana Figueiredo | fotografias de Caroline Chevalier ]
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