| ENTREVISTA A IRENE FLUNSER PIMENTEL E MARGARIDA DE MAGALHÃES RAMALHO
18-11-2016 - Luís Almeida D' Eça
A propósito de 'O Comboio do Luxemburgo'
Em novembro de 1940, o regime de Salazar recusou a entrada em Portugal a um comboio com 293 passageiros judeus do Luxemburgo, em fuga dos nazis. Recém-lançado pela editora A Esfera dos Livros, O Comboio do Luxemburgo é uma profunda investigação em torno deste incidente infame, muito pouco conhecido. As autoras, Irene Flunser Pimentel e Margarida de Magalhães Ramalho, revelam à Agenda Cultural detalhes desta obra notável.
Como é que um caso desta relevância permanece tão pouco conhecido?
IFP: A questão dos refugiados ficou desconhecida duramente muito tempo. Este caso ficou escondido porque foi um episódio muito dramático que do ponto de vista oficial de Portugal e do Luxemburgo (foi também um falhanço do Governo do Luxemburgo no Exílio) não havia interesse em divulgar. Porque foi uma tragédia que contraria a ideia de que Portugal acolhia os refugiados que se salvavam através do seu território.
MMR: O período da Segunda Guerra Mundial foi tão complicado com tanta coisa dramática a acontecer em simultâneo que esta era apenas mais uma.
Estes transportes eram organizados pelos nazis para expulsar os judeus dos territórios ocupados, neste caso o Luxemburgo, antes de promoverem a “solução final”, o extermínio em massa?
IFP: Sim, com o apoio do Consistório Israelita porque pode haver interesses comuns por questões diferentes. No caso do consistório era para retirar aquelas pessoas de uma situação de discriminação e de perseguição. No caso dos nazis era expulsá-los porque eram judeus.
Estes 293 judeus do Luxemburgo dirigiam-se a Portugal, em trânsito, maioritariamente para Cuba e os EUA?
MMR: Portugal não concedia vistos definitivos por isso a ideia era irem para outro lado, para os EUA, o Brasil ou América Latina. Para onde fosse possível.
Ficaram retidos na fronteira de Vilar Formoso cerca de dez dias a pão e agua, literalmente?
MMR: Nos primeiros dias é a população que traz comida ao comboio. Depois a Cruz Vermelha também intervém. Mas aqueles desgraçados não puderam sair do comboio durante sete dias, só ao oitavo é que o Agente da PVDE (Polícia de Vigilância e Defesa do Estado) lhes permitiu a saída durante meia hora.
IFP: E em pânico, sem perceber o que se estava a passar, porque lhes tinha sido dito que iriam entrar e ser acolhidos no Luso.
Este foi um caso lamentável em que os valores do nacionalismo se sobrepuseram aos humanitários?
IFP: O nacionalismo do Estado Novo como todos os nacionalismos reverte sempre contra os refugiados. Mas aqui reverteu indiretamente pelo facto de ter havido elementos fardados da Gestapo a acompanhar o comboio. Mais do que uma questão nacionalista, foi patriótica em defesa da neutralidade portuguesa. Em certas circunstancias até pode parecer correto, mas neste caso foi a pior coisa que podia ter acontecido.
MMR: Podemos pensar que se o comboio não viesse acompanhado pela Gestapo teria entrado, como aconteceu com os dois transportes anteriores.
IFP: Chegou a haver tiros na fronteia e agentes da Gestapo presos. Foi um incidente diplomático muito complicado. Ora, fugir naquela altura implicava a maior discrição possível a todos os níveis.
Que destino tiveram estes refugiados recusados por Portugal?
IFP: Cinquenta e três, incluindo uma família inteira, foram deportados para Auschwitz e destas apenas uma sobreviveu. Houve quem fugisse em Espanha, uma pessoa atirou-se do comboio. Era mais fácil fugir se não se viesse em família, se se fosse mais novo, mais adestrado fisicamente, mais audacioso.
MMR: Verifica-se que há um grupo mais pequeno que tem mais dificuldades, nomeadamente de dinheiro porque salvar-se custava muito dinheiro. Terão sido, muito provavelmente, estes os que morreram.
Estes refugiados judeus tinham, na maioria, um nível socioeconómico e cultural acima da média, ligados a profissões liberais e atividades comerciais. Eram o tipo de refugiados que Salazar temia?
IFP: O que Salazar temia verdadeiramente eram os intelectuais e adversários políticos. Não era por serem judeus. Há uma célebre carta ao embaixador Armindo Monteiro sobre refugiados polacos, ricos e intelectuais, em que diz que são sobretudo esses que não quer. Receava o contágio das elites portuguesas.
MMR: Porque podiam trazer modernices. Mas havia também o problema de muitos destes refugiados serem apátridas que nenhum país aceitava. De repente podiam ficar indefinidamente em Portugal.
Em dado momento existiam em Portugal cerca de 10.00 refugiados da Segunda Guerra Mundial que inevitavelmente se relacionavam com as populações locais. Que influências deixaram?
IFP: Sobretudo influências ao nível dos costumes nas cidades e zonas balneares, onde havia mais concentração de refugiados. A diferença nos comportamentos das mulheres, nomeadamente os fatos de banho e saias mais curtas ou o facto de não usarem meias. O sentarem-se no café, simplesmente. Há uma história curiosa: as pessoas iam à espanada da Pastelaria Suíça ver as pernas das mulheres e passaram a chamar ao local o “Bompernasse”. Os refugiados não podiam trabalhar mas podiam cozinhar. Uma senhora da zona de Berlim começou a fazer umas bolas que vendia a outros refugiados. As pessoas gostaram e ficaram as bolas de Berlim. Outro aspeto, por exemplo, foi a implementação do iogurte.
MMR: Os rebuçados Doutor Bayard são uma receita dada por um refugiado a uma pessoa que o ajuda. Na zona da Estefânia criaram-se várias fábricas polacas de malhas. Lembro-me, em criança, de ir com a minha mãe a essa zona comprar malhas para o inverno.
O que mais impressiona neste livro, já que todos conhecemos os horrores do nazismo, é o facto de nenhuma nação se ter empenhado em ajudar estes refugiados numa situação desesperada de vida ou de morte.
IFP: A partir de 1938 as leis dos vários países são no sentido de fecharem as fronteiras, não permitindo a entrada de refugiados judeus. Não por antissemitismo, mas porque esses não podiam voltar ao país de origem. Portugal, aí, não se distinguiu dos outros países, mesmo democráticos.
MMR: Sempre aquele velho medo de virem roubar os empregos aos cidadãos nacionais. Aliás os refugiados em Portugal, e em outros países, estavam proibidos de trabalhar
Com a derrota dos Alemães foi a vez dos nazis se refugiarem em Portugal. Como foi a relação entre carrascos e vítimas?
IFP: Gostava de ter visto. Dava um filme. Na Cúria, por exemplo, estiveram juntos a dormir em quartos lado a lado.
Perante a atual crise de refugiados que reflexão pode promover este livro?
IFP: A História dará lições ou não. Eu não sei. Porém, penso que é fundamental que se saiba o que aconteceu: que houve um caso de pessoas que foram impedidas de entrar num dado país e cinquenta delas foram assassinadas. Portugal até já teve essas necessidades: não se fugia da guerra, mas das péssimas condições económicas e da cadeia porque, em muitos casos, ficar implicava a prisão e a tortura. Felizmente houve países que receberam esses portugueses.
MMR: O grande drama é não conseguirmos olhar para os outros como se fosse connosco. Há uma parte em que somos todos idênticos e só temos que pensar: e se fosse connosco ou com os nossos filhos. A Europa devia meter a mão na consciência vendo até que ponto foi responsável por esta situação e agora não quer saber.
[ por Luís Almeida D' Eça | fotografias de Humberto Mouco ]
O COMBOIO DO LUXEMBURGO
Irene Flunser Pimentel e Margarida de Magalhães Ramalho
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Editora: A Esfera dos Livros
Data: 2016
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A 7 de Novembro de 1940 partiu do Luxemburgo, que o nazismo tentou tornar no primeiro país “livre de judeus”, um comboio com 293 passageiros que tinha Portugal como destino. Mas ao contrário de outros comboios com judeus em fuga, não foi dada autorização na fronteira de Vilar Formoso para que entrasse no país. Os refugiados ficaram mais de uma semana fechados nas carruagens, numa atmosfera desumana, sujeitos a um frio intenso e alimentando-se do pouco que a população pobre da zona tinha para lhes oferecer. Já com as negociações em curso para instalar os judeus no Luso, o governo de Salazar negou-lhes a entrada em Portugal, empurrando-os assim para uma morte mais do que provável e que, desgraçadamente, em muitos casos se veio a confirmar. Após a análise de documentos inéditos e de entrevistas a sobreviventes e seus familiares, as historiadoras Irene Flunser Pimentel e Margarida de Magalhães Ramalho explicam as razões deste acontecimento histórico muito pouco conhecido que deixa cair por terra a ideia de que Portugal, na figura do seu chefe de Governo, António de Oliveira Salazar, acolhia todos os refugiados da Segunda Guerra Mundial. O estudo e análise deste infame caso histórico reveste-se, no contexto da crise de refugiados que vivemos, de uma perturbante e reveladora atualidade.
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