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ENTREVISTA A CATARINA MOURÃO
A propósito de 'A Toca do Lobo'

11-11-2016 - Ricardo Gross

Desde o ano passado, a realizadora Catarina Mourão já apresentou o seu último filme em festivais e mostras de cinema na Europa e na Ásia. A primeira vez que A Toca do Lobo foi visto em Portugal foi por ocasião da edição de 2015 do IndieLisboa, onde recebeu o Prémio do Público para Melhor Longa-Metragem.

O documentário, que agora estreia no circuito comercial, conta episódios da história de uma família que é a dela, mas que espelham comportamentos das famílias de cada um de nós. Já fomos assim. Um país de muitos silêncios. Uma toca.

O filme opta deliberadamente por não dar informação sobre a relevância do seu avô nas letras portuguesas. Gostaríamos que começasse por nos apresentar o escritor Tomaz de Figueiredo.
O meu avô tem um percurso um bocado  sui generis . Começa a escrever enormemente a partir dos 45 anos. Pertencia ao grupo de Coimbra dos Presencistas. As suas maiores afinidades eram com José Régio, Agustina Bessa-Luís, Aquilino Ribeiro, aquela escrita mais regionalista. Era um curioso da língua. Tem um livro que se chama  Dicionário Falado  que é um apanhado de vocabulário e de terminologias específicas que já não se usam. Em 1945, escreve o primeiro livro  A Toca do Lobo  que recebe o prémio Eça de Queirós. Depois escreveu muito, muito, muito. Foi publicado pela Verbo, pela Guimarães e mais tarde pela Imprensa Nacional Casa da Moeda. Era um bocadinho um  misfit . Não foi totalmente reconhecido pelo regime – depois vim a saber que era profundamente anti-salazarista, embora não sendo de esquerda –, era uma personagem algo incómoda mas, depois com o 25 de Abril, também foi considerado um escritor não-alinhado.

Relativamente aos materiais de arquivo que usa no filme, como organizou as fases de pesquisa e rodagem e em que momento concluiu que já tinha material suficiente para fazer este documentário?
Esta rodagem foi bastante diferente das rodagens dos meus outros filmes. A metodologia não foi a de vamos filmar e filmar, até eu sentir que já tenho os elementos todos, e depois vamos para a mesa de montagem. O que aconteceu foi que fui encontrando elementos, nomeadamente no arquivo da televisão, o que espoleta o filme, aquele programa em que o meu avô fala do presente [umas saquinhas para guardar cachimbos] que quer dar a uma futura neta e nomear esse nome Catarina, a coincidência foi tão grande que achei, eu não acredito em bruxas mas há aqui qualquer coisa que no mínimo é cinematográfica e um bom ponto de partida para um filme. Depois havia toda uma ideia narrativa que embora não esteja claríssima na estrutura do filme, me serviu como metodologia. Uma delas era obviamente partir desse arquivo e encontrar as saquinhas de cachimbo.
   
Uma das frases que marca o começo do filme diz que “nunca nos curamos da nossa infância”. Pensa que o filme que fez ou mesmo o cinema no geral tem algum poder sobre esta condenação dos primeiros anos?
Se pensarmos nessa frase de uma forma mais lata e metafórica, acho que o cinema é um óptimo instrumento para aproximar esses tempos, é um espaço muito fértil para o onírico e para a memória e pode preencher um espaço afetivo. Não vamos entender que o cinema tenha uma função terapêutica, mas claramente o cinema ao espoletar a nossa imaginação preenche vazios, preenche ausências.

A Toca do Lobo estabelece um padrão de figuras masculinas ausentes – e só vemos mulheres que apresentam o seu testemunho diante da câmara – que se estende do seu avô e do seu tio até ao seu próprio pai ou ao pai das suas duas crianças. Considera que esta questão é nuclear ao seu filme?
Nunca tinha pensado nisso dessa maneira. É curioso que refira isso. Usei entrevistas com muitos homens que curiosamente aparecem de uma forma mais fantasmagórica. O meu avô no arquivo RTP, o entrevistador que fala com ele num programa literário, até o meu pai aparece num filme Super-8 – tenho muito poucas fotografias do meu pai, foi engraçado encontrar isto. Mas não foi propositado, as coisas aconteceram. Mas, de facto, a história fala disso, da ausência do elemento masculino, de um modelo convencional de família que é adulterado e de como as pessoas trabalham com isso e vivem com isso.

Ao longo do filme estamos mais focados no mistério que diz respeito à vida do seu avô, Tomaz de Figueiredo, mas o mistério que permanece mais fortemente no final é o da pessoa da sua tia Maria Antónia, que se encerrou na casa familiar de Casares, onde guarda o espólio do seu avô, e cujas breves explicações que dá estão numa carta.
Ainda hoje não é para mim clara a razão dessa rotura. Por muito que a minha mãe explique os acontecimentos que para ela são objetivos e factuais, como o momento em que o meu tio herda a casa mas a minha tia acaba por ficar com ela, e o espólio que estava guardado é para lá transportado, tudo isso são coisas que já aconteceram há imenso tempo. Imagino que o meu tio, se estivesse vivo, podia acrescentar mais elementos a esta história. São coisas que ficam por esclarecer e tem a ver com o próprio filme, que fala das reações emotivas aos acontecimentos que ganham mais consistência do que aquilo que os motivou. As razões que motivam as roturas de repente esboroam-se, evaporam-se, ninguém percebe realmente por quê, e aquilo que vai cristalizando e sedimentando é um sentimento. No fundo são as camadas do tempo, silêncios após silêncios, equívocos atrás de equívocos, ficções por cima de ficções. O grande problema é o silêncio, as pessoas não falarem sobre as coisas.

Na cena em que a sua mãe assiste comovida à gravação da RTP que mostra o pai dela a falar das saquinhas para os cachimbos e das futuras netas, ao observar aquele plano pôs a hipótese de não o usar pela exposição de uma emoção tão íntima?
Claro que sim, ponderei imenso. Mostrei também o filme à minha mãe para ver como é que ela se sentia. Percebi que aquilo é um momento de  flic importantíssimo, é ali que ela de certa forma faz as pazes, quando diz que na altura era muito novinha, não tinha nem experiência de vida para reinventar a sua relação com o pai. Ver esse filme em que ele está a falar para mim, mas que está a falar para ela também, foi importante manter, ainda que seja um momento emocionalmente forte. Quando comecei a filmar a minha mãe fi-lo como nessa cena, eu a filmar e ela à frente da câmara, e no início ela defendia-se bastante. Foi aí que decidi que devia estar com ela e se repararem nas primeiras cenas ou ela está com os netos ou eu estou com ela. Nessa cena ela volta a estar só, mas o que funciona é um certo triângulo. Ela está a olhar para o meu avô, mas está a olhar para mim, como se de repente estivéssemos os três reunidos naquela sala.

Para quem é que fez este filme: para o seu avô, para a sua mãe, para os seus filhos, para si?
Não posso dizer que tenha sido para o meu avô porque já não está vivo. Tenho uma certa dose de misticismo, mas até agora considero-me ateia. Acho que fiz este filme por mim, pela minha mãe, pelo cinema e pelo contar de uma história. Sinceramente, acho que o facto de ter vindo a mostrar o filme em festivais permitiu verificar que toda a gente se revê um bocado nisto. Não fui muito racional, fui descobrindo as coisas e fui um bocadinho levada. Uma espécie de transe, uma espécie de hipnose ao longo do filme. O meu avô, curiosamente, sobretudo a seguir à experiência no hospital psiquiátrico, escreveu imenso e de uma forma que ele chamava de escrita automática. Não estou a dizer que tenha feito o filme em realização automática, mas houve uma dimensão em que não me questionei tanto.

Num momento curioso mostra uma parede onde se vêem fotografias e escritos relacionados uns com os outros que sugere como que uma investigação policial, do FBI, que vai ligando os vários cúmplices e executores do mesmo crime.
Agora que me fala nisso estou a lembrar-me daquele filme,  Os Suspeitos do Costume  [de Bryan Singer, 1995], em que no fim percebemos que tudo aquilo é uma farsa. No fundo, essa parede tem uma função parecida. É o meu laboratório, o meu campo de trabalho, mas de repente surgem coisas fora da cartola que não têm a ver com aquilo. Mas sim, há uma dimensão detetivesca na minha abordagem.

Não será o seu filme, mais do que o retrato de uma família, o retrato de um país? O título  A Toca do Lobo remete para o livro do seu avô, mas até que ponto aceitaria que a 'toca' fosse entendida como sendo Portugal e o 'lobo' Salazar?
A Toca do Lobo   tem imensos sentidos no filme. Por um lado o título do livro do meu avô. Por outro, esse livro fala de uma casa de infância e é uma obra completamente nostálgica. A casa, essa que por coincidência é a famosa casa de Casares – uma mistura da casa de Casares e de outra –, casa onde não entrei. Logo, a toca do lobo pode também ser a casa da minha tia, e se formos ao  google  toca do lobo está relacionado com Hitler, mas pouca gente faz esta ligação.

Afastando-nos agora do filme, gostava de lhe perguntar se sente que o documentário ainda é tratado como parente pobre do cinema.
Durante muitos anos sim, mas hoje em dia temos um concurso para documentários, temos o  Doclisboa  e o  Indie , que também promove o documentário, mesmo assim ainda hoje li uma crítica que considerava o meu filme "um ovni nas salas" de cinema. Imagino que por ser um documentário. Acho que o cinema que é de certa forma mais experimental e que tem a semente da inovação, está sempre a transpor as fronteiras. 
 
Imagina-se então a poder caminhar na direção de um trabalho puramente ficcional, ou impuramente ficcional…
Imagino-me a não me preocupar mesmo nada como isso. Por exemplo, agora estou a fazer uma curta que parte de imagens de arquivo mas que é puramente ficcional.

E o que podemos saber mais sobre isso?
Podem saber que é outra vez sobre a infância, sobre a memória e sobre a praia. 
 
[ por Ricardo Gross  |  fotografias de Francisco Levita/CML-ACL ]  

 

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