| Abdica e sę/Rei de ti mesmo
28-10-2016 - Maria do Carmo Vieira
Na expressiva data deste novo Encontro com Agostinho da Silva, aliás, leitor assíduo de Fernando Pessoa, ecoam forçosamente os versos nostálgicos de Álvaro de Campos, escritos no dia do seu aniversário, a 15 de Outubro, em que a «mesa posta com mais lugares, com melhores desenhos na louça, com mais copos» e a presença das «tias velhas, dos primos diferentes», «tudo era por [sua] causa» (1). Hoje, a 15 de Outubro de 2016, tudo é por causa de Agostinho da Silva e é em família que o lembramos, a família dos que o amaram, e continuam a amar, e dele receberam a mais duradoura e benéfica influência espiritual. Ao contrário do que escreveu no seu poema Homenagem (2) : «de nós nada mais deixamos/ que vãs memórias,» o certo é que a sua palavra, a sua incansável procura de saber, a vontade de ter a vida como guia, o seu optimismo face ao mundo e a sua postura em simpatia e generosidade, aspectos tão alheios ao culto da ignorância e da adulação, ao miserabilismo e à preguiça de pensar, à indiferença perante o sofrimento do Outro, hoje em dia tão comuns, tiveram muito naturalmente o dom de estimular a ideia de aperfeiçoamento. A força de vontade para desbravar os difíceis caminhos a percorrer e o desejo obstinado de querer «respirar» a vida em liberdade interior dependeriam exclusivamente de nós. Essa a grande lição que Agostinho da Silva deixou a quem o ouviu ou leu ou com ele também conversou e daí a escolha dos versos de Ricardo Reis para intitular a presente comunicação: Abdica e sê/ Rei de timesmo, versos que o poeta heterónimo repete nas suas odes, tal o profundo significado existencial que lhes atribuiu, e que Agostinho da Silva assimilou, recriando-os na procura da sua própria individualidade. Em comum, a coragem e a sabedoria de resistir a «um prato de lentilhas»; em contraste, a vivência do epicurismo, triste em Reis pela obsessiva angústia face à certeza da morte, plena de alegria de viver, da qual não se ausenta naturalmente o sofrimento, em Agostinho da Silva.
Foi numa tarde de Outono que Agostinho da Silva deixou como despedida a poesia de Ricardo Reis, dizendo-me de cor alguns versos, em forma de máximas, a mim, que, então jovem professora, lhe falara de forma entusiasmada dos heterónimos Alberto Caeiro, Álvaro de Campos e Bernardo Soares cuja leitura mais me havia envolvido, não incluindo na mesma tonalidade Ricardo Reis. Efectivamente, a sua poesia não me marcara porque, no fundo, ainda não a compreendera. Essa tarde foi, na verdade, o início do meu encontro com o médico, de formação clássica, nascido no Porto (1887) e mais tarde exilado no Brasil (1919), onde segundo informação de Fernando Pessoa foi «professor de Latim (humanidades), num importante colégio americano». Também Agostinho da Silva nasceu no Porto (1906), ainda que com meses fosse para Barca d’Alva, regressou à «invicta» onde fez os seus estudos, e o seu gosto e interesse pelos clássicos determinou a frequência do curso de Filologia Clássica (1924-1928), na Universidade do Porto, foi professor liceal, tendo depois viajado para o Brasil (1947) onde também leccionou, aí permanecendo até 1967, ano em que regressou felizmente a Portugal e nos deu a alegria de com ele conviver, aprendendo a não nos perdermos de nós próprios. No poema, que dedica a Ricardo Reis, intitulado: «Ricardo Reis: Cantiga sua Partindo-se», exprime Agostinho da Silva essa ideia bem clássica, e reiterada nas odes do heterónimo pessoano, de que «não se cumpre quem ecoa/quem a si próprio não soa» (3).
Íntimo da poesia de Ricardo Reis e, como não podia deixar de ser, da do seu criador que, em variadíssimos textos de carácter teórico, defende o papel relevante sobretudo dos Gregos na Filosofia, na Literatura e na Arte, Agostinho da Silva realça igualmente a necessidade do acesso à Cultura, valorizando a leitura e a compreensão dos clássicos, os que resistiram ao Tempo, seguro da aprendizagem que propiciariam, sobretudo aos mais jovens, sobre o mundo e a condição humana, e mesmo que não se sentisse de imediato a sua influência, era seguro que isso aconteceria um dia, garantia-nos. E assim é. Sabemo-lo por experiência própria e revelada também por ex-alunos. E tal como Italo Calvino ou Saul Bellow, aconselhava a que nos libertássemos de intermediários, ou seja, de quem com estudos críticos ou comentários, ou, pior, com receitas pedagógicas, acabava por impedir, contaminar ou falsear o diálogo de ideias em que naturalmente a leitura de uma obra de arte nos envolve. Na verdade, esse «dizer qualquer coisa», que é apanágio da literatura e de toda a obra de arte, tem de ser apreendido em primeiro lugar por nós próprios. Foi assim que «Pires de Lima, o grande professor de Português que vivia no Porto», como o descreveu Agostinho da Silva, o «levou a tomar contacto com grandes portugueses, sobretudo com poetas. […] tendo a [sua] paixão pelo mar [esmorecido], dando lugar a uma outra: os escritores, a cultura portuguesa…»(4). A Cultura como um alimento que, uma vez assimilado, desperta novos interesses, propicia reflexões, suscita questões e, educando a sensibilidade, favorece o encontro com os outros.
Liberto de pressões, odiando a estupidez, saudavelmente indisciplinado e sempre munido de ironia e de humor, forças caracterizadoras do seu discurso, Agostinho da Silva referia com certo orgulho e graça, a propósito da sua demissão de professor, em 1935, por se recusar a «jurar que não pertencia a nenhuma sociedade secreta», que o «não categórico» a essa imposição só recebera resposta de duas pessoas: «a de Fernando Pessoa e a [sua]»(5), sendo motivo de elogio a inteligência com que o poeta ortónimo desmontara a natureza e o conteúdo do projecto-lei do deputado José Cabral, sobre «associações secretas» visando essencialmente a Maçonaria, temida pelo regime de Salazar, conforme precisaria Agostinho da Silva. É, na verdade, de leitura imprescindível o texto de Fernando Pessoa, publicado no Diário de Lisboa, a 4 de Fevereiro de 1935, pela inteligência da sua argumentação, pela finura da sua ironia e pelo seu profundo conhecimento da matéria em causa. A mesma ousadia, o mesmo humor sarcástico, a mesma aversão à estupidez, à hipocrisia e à ignorância, a mesma decisão em não alinhar com imposições que anulam a dignidade humana. Assim foi o encontro espiritual entre Fernando Pessoa e Agostinho da Silva. Fernando Pessoa morreria a 30 de Novembro de 1935 e Agostinho da Silva, cumprindo-se no sonho e na audácia de responder a desafios, evade-se de Portugal para o mundo…
Defendendo a inclusão, com sentido de responsabilidade e sem lamúrias, nomeadamente através do acesso de todos à Cultura, Agostinho da Silva analisa magistralmente, no seu livro Considerações, a hipocrisia dos que, inchados de auto-satisfação e numa linguagem aparentemente bondosa, dogmatizam o que é melhor para o povo. Um texto propositadamente escolhido para terminar a minha comunicação e que define a nobreza de espírito inigualável do pensador e do intelectual que nunca traiu os seus ideais: «[…] amam o povo, mas não desejariam, por interesse do amor, que saísse do passo em que se encontra; […] vêem-se generosos e sensíveis quando se debruçam sobre a classe inferior e traduzem, na linguagem adamada, o que dela julgam perceber; é muito interessante o animal que examinam, mas que não tente o animal libertar-se da sua condição; estragaria todo o quadro, […]. Há também os que adoram o povo e combatem por ele, mas pouco mais o julgam do que um meio; a meta a atingir é o domínio do mesmo povo por que parecem sacrificar-se; […] preferem o estilo de barricada; mas, como nos outros, é o som do oco tambor retórico o último que se ouve. Só um grupo reduzido defende o povo e o deseja elevar sem ter por ele nenhuma espécie de paixão; […] porque tal atitude os impediria de ver soluções claras e justas que acima de tudo procuram alcançar; e, finalmente, porque lhes é impossível permanecer em êxtase diante do que é culturalmente pobre, artisticamente grosseiro, eivado dos muitos defeitos que trazem consigo a dependência e a miséria em que sempre o têm colocado os que mais o cantam, o admiram e o protegem »(6).
Maria do Carmo Vieira
(1) Poema «Aniversário» (15-10-1929), inPoesias de Álvaro de Campos. Lisboa, Edições Ática, págs. 283/4.
(2) InCitações e pensamentos de Agostinho da Silva, organização de Paulo Neves da Silva. Lisboa, Casa das Letras, 2.ª edição, 2009, pág. 181.
(3) Do Agostinho em torno do Pessoa, Organização da Maria Rosa, João Pedro, Francisco Ly. Lisboa, Ulmeiro, 1990, pág. 25
(4) A Última Conversa – Agostinho da Silva, entrevista de Luís Machado, com prefácio de Eduardo Lourenço. Cruz Quebrada, Casa das Letras, 2005, pág. 51.
(5) Idem, pág. 33
(6) Citações e pensamentos de Agostinho da Silva, organização de Paulo Neves da Silva. Lisboa, Casa das Letras, 2.ª edição, 2009, págs. 129 /30
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