| ENTREVISTA A IVO M. FERREIRA
A propósito de 'Cartas da Guerra'
16-09-2016 - N.A.
Cartas da Guerra , de Ivo M. Ferreira estreia, este mês, nos cinemas. O filme é baseado na obra de António Lobo Antunes,D’este viver aqui neste papel descripto, as cartas da guerra que o escritor enviou à mulher quando esteve isolado durante dois anos na Guerra Colonial, em Angola. Conversámos com o realizador sobre este novo trabalho, o seu maior projeto até agora.
Como surgiu a ideia de adaptar as cartas de António Lobo Antunes ao cinema?
Desde algum tempo que tinha a ideia de trabalhar o tema da Guerra Colonial. Uma realidade pouco explorada e tratada tendo em conta a tragédia que foi. Não sabia de que forma havia de pegar no tema, mas tinha muita vontade de o trabalhar. Um dia chego do estrangeiro, entro em casa e ouço a minha mulher, que estava grávida, a ler para o bebé as Cartas da Guerra (D’este viver aqui neste papel descripto - Cartas da Guerra). Nesse momento compreendi que o livro tinha todos os ingredientes para ser adaptado ao cinema: era um documento histórico, tinha algumas notas de humor, era também um documento biográfico, porque retrata um período da vida de um grande escritor, e ao mesmo tempo uma história de amor fabulosa. Embora estivesse com outro projeto na altura, esta ideia não me largava. Liguei à Zé Lobo Antunes (filha do escritor) que é minha amiga e combinamos uma reunião com ela e a irmã Joana. Inicialmente pareceu-lhes impossível fazer um filme sobre a história dos pais, era demasiado íntimo. Depois de fazer um esboço inicial, acabei por conseguir a autorização delas para trabalhar no argumento. De seguida falei com o Luís Urbano, do Som e a Fúria , e consegui o apoio dele para começar a trabalhar no filme.
O escritor teve algum tipo de participação na rodagem ou na preparação do filme?
Tive algumas vezes com ele e com alguns dos seus camaradas de guerra. Queria que ele se sentisse bem com o processo, porque estava a fazer um filme biográfico em que o personagem principal está vivo. Por questões pessoais, ele preferiu sempre mantar o distanciamento.
Ao longo do filme as cartas vão sendo lidas ora pelo autor, ora pela destinatária. Porquê esta opção?
Há várias razões. Em primeiro lugar a guerra foi também uma tragédia das mulheres. Se pensarmos que 800.000 a 1 milhão de soldados foram destacados para as ex-colónias, isto significa que muitas famílias foram afetadas. Ao ler as cartas senti muito a destinatária daquelas mensagens e percebi os seus dilemas. Acabei por criar uma espécie de personagem intermédia: ela às vezes lê as cartas para ela, outras lê como se fosse ele. O que é também uma forma de os aproximar. Ele está muito isolado, e envia-lhe estes aerogramas que demoram muito tempo a chegar, por isso quando ela os lê e se veem as coisas a acontecer ao mesmo tempo é quase como se existisse entre eles uma comunicação espiritual.
Para além da leitura das cartas o filme apresenta uma narrativa paralela. Em que se inspirou para construir essa ficção?
As cartas foram sempre a “estrela polar”. Tanto para mim, como para o Edgar Medina, que é coargumentista, essa questão ficou desde logo assente. Há cenas do filme que estão apenas subentendidas nas cartas, por isso recorremos também a outros dois livros Os Cus de Judas e Memória de Elefante . Fizemos também entrevistas aos camaradas, lemos as crónicas. Por vezes encontrávamos contradições. Quando havia várias versões que as cartas não esclareciam, escolhíamos aquela que mais nos agradava.
O olhar de Miguel Nunes é uma das coisas que mais impressiona ao longo do filme. Remete para o cinema clássico, para o olhar puro de um Gary Cooper em John Doe ou de um Henry Fonda nas Vinhas da Ira. Foi intencional?
Uma coisa era certa, o protagonista tinha que ser bonito e ter olhos claros, tal como o António Lobo Antunes. Era uma das características que o distinguia dos outros, que o tornava especial, para além de ser um intelectual incrível. Realmente quis trabalhar esse lado de época, de um clássico intemporal. Também nesse sentido optei por filmar a preto e branco. Está relacionado com a nossa iconografia plástica da guerra. A documentação que temos é toda a preto e branco. Por outro lado, estava a narrar a história de alguém que é uma pessoa viva, conhecida e de alguma forma sentia-me prisioneiro dessa figura pública. O preto e branco foi como se colocasse um filtro. Quando comecei a filmar assumi que aquela era a minha história, o meu filme, independentemente de ser uma biografia.
O filme tem grandes meios de produção, algo pouco usual no cinema português. Foi fácil conseguir financiamentos para o filme?
Há projetos que se conseguem fazer com pouco dinheiro. Este não era um deles. Isto porque não queria filmar sem ser em África. Era para mim algo categórico e importante porque o espaço influencia-me muito. Mas isso também fez com que o financiamento fosse mais difícil. Havia um risco grande de as coisas correrem mal, o que leva à desconfiança por parte dos investidores estrangeiros. Por outro lado, eu também não tinha nenhum trabalho feito anteriormente que pudesse ilustrar o que poderia ser feito. Por isso avançámos conscientes de que iríamos gastar todo o dinheiro que tínhamos na rodagem. Isto implicava penhorar os salários do realizador, produtor… Dois anos depois voltámos a tentar o financiamento fora, agora com um trabalho concreto, filmado e pode parecer exagerado, mas em poucas horas conseguimos financiar o filme com dinheiro estrangeiro.
Como foi filmar em Angola?
Foi fantástico, fortíssimo e horrível também. Filmamos no Cuando Cubango, uma zona que para os próprios angolanos é muito remota, chamam-lhes as terras do fim do mundo. Tínhamos que montar o décor, o que implicava um aquartelamento construído por nós. Queria que estivéssemos perto de uma aldeia, com um rio, uma planície e precisava de uma ponte destruída para uma das cenas do filme. Encontrámos a ponte, que estava de facto destruída. Isto implicava que para passarmos com o décor a tínhamos de reconstruir e foi literalmente o que fizemos, com a ajuda das aldeias à volta. Foi uma experiência fabulosa, apesar das doenças, dos crocodilos e do isolamento.
[ por Ana Figueiredo; fotografias de Humberto Mouco ]
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