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UMA KALACHI SOBRE O PEITO

24-06-2016 - Matos Serra

AO TER CONHECIMENTO DESTE MEU POEMA, QUE É O RELATO DE UM ACONTECIMENTO REAL DA MINHA VIDA DURANTE A GUERRA… O MEU AMIGO ANTÓNIO JACINTO PASCOAL, PROFESSOR, ESCRITOR E POETA, PEDIU-ME AUTORIZAÇÃO PARA FICCIONAR ESTA HISTÓRIA DRAMÁTICA E, A PARTIR DO POEMA, ESCREVEU UM CONTO E, COMO ACONTECE, EM GERAL, NAS OBRAS DE FICÇÃO, O PERSONAGEM MASCULINO PRINCIPAL (EU) APAIXONOU-SE PELA GUERRILHEIRA E, NO ATO DE CUMPRIR A ORDEM SUPERIOR, NÃO RESISTE À TENTAÇÃO E AJOELHA-SE PARA LHE DAR UM COMOVIDO E DOLOROSO BEIJO NA TESTA.

DEVO CONFESSAR QUE, EMBORA ESSE BEIJO TENHA EXISTIDO, SOMENTE, NA FICÇÃO DO ESCRITOR, A FICÇÃO, NESTE CASO, CONFUNDE-SE BASTANTE COM A REALIDADE. HOUVE, HÁ E CONTINUARÁ A HAVER NO MEU CORAÇÃO MAGOADO UM PROFUNDO AMOR POR ESSA MULHER QUE MARCOU A MINHA VIDA. UM AMOR TALVEZ DIFERENTE DO QUE É HABITUAL EXISTIR ENTRE DOIS SERES, UM AMOR QUE EU PRÓPRIO NÃO CONSIGO EXPLICAR, UNILATERAL, PORQUE O REVERSO NÃO EXISTE, MAS PROFUNDAMENTE HUMANO E INFINITO AMOR !....

CENAS DA MINHA VIDA REAL

UMA KALACHI SOBRE O PEITO

Os helicópteros saíram da base,
sorrateiros... em voos rasantes...
cosidos com as vertentes e os vales,
como um pequeno enxame de moscardos,
deixando o eco do seu zumbido metálico
a repercutir-se nas curvas do rio
e nas encostas da floresta luxuriante.

Passaram, sorrateiros,
como grandes libelinhas de aço,
dissimulados, rente à orla da mata,
como convinha ao secretismo da missão,
voando a três ou quatro metros de altura
e largaram dos bojos um grupo de sessenta combatentes.

O acampamento de guerrilheiros
situava-se a cento e cinquenta metros da orla,
camuflado na floresta densa.

Eu fazia parte do grupo de assalto
que avançou em linha
e surpreendeu o acampamento
com fogo de rajadas.
Homens, mulheres e crianças,
"expressão de um povo em armas",
tombaram no chão do acampamento.
- Um menino pretendia fugir,
segurando os próprios intestinos,
mas... tombou no solo.

Muitos guerrilheiros dispararam em fuga,
alguns deixaram as armas.
A guerrilheira mestiça
desapareceu por entre o arvoredo
saltando com a agilidade de uma gazela,
revertendo a fuga, a intervalos sucessivos
para disparar a KALACHI
que mantinha a tiracolo
com a bandoleira distendida
para lhe facilitar a execução do tiro.
-O grupo disparou rajadas na direção dos fugitivos
e iniciou a perseguição.

Cem metros à frente,
caída, de costas
sobre a raiz de um embondeiro,
a guerrilheira jazia
com a kalachi cruzada sobre o peito,
a respiração ofegante
e sangrando de várias perfurações.

A minha subunidade seguia
protegendo a retaguarda do grupo,
e, da frente, em passe-palavra,
veio a ordem do comandante:
Mandar abater a guerrilheira a golpes de sabre.

Recusei-me a executar a ordem
para poupar os meus soldados
ao efeito dessa violência atroz.

No ponto de reunião sugeri:
Que a guerrilheira fosse evacuada e salva, e... fui severamente repreendido,
e... ameaçado com o regulamento militar.

Ela era o símbolo da coragem,
da beleza e da juventude e, ao mesmo tempo...
era tão frágil e desprotegida...
Havia no seu corpo tombado
uma aura de grandeza heroica e comovente.
Eu, não lhe havia retirado a arma, achava que era um dos seus direitos,
para além do direito à vida.

Os meus soldados
tinham ficado impressionados e comovidos
com a grandeza daquele corpo frágil de mulher
e muito solidários comigo
e com a perspectiva de salvarmos
aquela vida presa por um fio.

Em cerca de um ano de convivialidade
em missões de combate...
tínhamos aprendido
a ser bons camaradas de armas,
bons combatentes, e também...
bons seres humanos;
apesar de termos, todos,
pouco mais de vinte anos.

Foi então que o comandante da missão
renovou, perentório, a ordem de execução.
Eu deveria mandatar, a um dos meus soldados,
o cumprimento da ordem...
ou, executá-la eu próprio,
ou então, sujeitar-me a julgamento militar.

Quando o grupo retrocedeu
continuei com a minha subunidade
como segurança à retaguarda.
Ao passarmos pela guerrilheira ferida
ela continuava com a respiração ofegante,
entre a vida e a morte.
Reparei no constrangimento dos meus soldados,
temendo, cada qual, ser o destinatário da ordem
para proceder à execução.

Para os poupar e defender de traumas futuros
e no gesto mais difícil de toda a minha vida,
usando não o sabre mas a minha arma automática,
abati a guerrilheira.

Maldita a guerra! Maldita a opressão!
Maldita a violência e maldito o colonialismo
passado ou atual!...
Esta, é para mim, a história mais pungente
que hei-de arrastar sem possibilidade de esquecimento,
e esta guerrilheira, que hoje será um ícone
da história do seu país - Angola,
é um dos meus símbolos máximos
da grandeza das mulheres.

Terei sempre presente
a imagem do seu corpo
jovem e frágil
como um símbolo de grandeza

"SEGURANDO UMA KALACHI SOBRE O PEITO"!....

Matos Serra, in Poemas do Tempo da Guerra

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