O fim de uma era
31-01-2014 - Martín Perez
O novo romance de Ian McEwan é baseado em um caso que o deixou obcecado: o financiamento oficial e secreto de uma célebre revista literária conservadora
No começo, parece que tudo já está dito. A voz do narrador do romance se apresenta desde a primeira linha: seu nome é Serena Frome e o que vai contar aconteceu quarenta anos atrás, quando lhe foi encomendada uma missão secreta do Serviço de Segurança britânico. “Não saí incólume”, adianta Frome. “Me despediram dezoito meses depois do meu ingresso, depois de terem me desonrado e arruinado meu amante, ainda que, sem dúvidas, ele tenha colaborado para a própria perdição”. Apesar desse resumo contundente, e como é de se esperar, a história da Operação Dulce não fez mais do que começar. Porque, como costuma acontecer com as histórias, a de Serena Frome pode se resumir apropriadamente em uma frase, mas também representa muito mais. Assim como sua história é de espiões, ao mesmo tempo ela não é. E também, como bem sabe quem já leu Expiación, romance do britânico Ian McEwan, a história não está realmente finalizada até que tenha chegado a seu final.
Apesar de McEwan ter confessado que consultou ninguém menos que John le Carré para reconstruir o clima reinante nos escritórios do Serviço de Segurança britânico da época, e mais ainda apesar de seu título, Operación Dulce não é um clássico romance de espiões. Filha de um bispo anglicano e boa estutande de matemática – embora leitora compulsiva –, as aventuras de Frome começam desde o princípio, e esse princípio inclui um professor já maduro que a iniciará em quase tudo, especialmente nos Serviços Secretos, ainda que isso funcione como uma carta de despedida entre ambos. Uma burocracia muito bem empregada e o clima de época destacam-se no livro antes de qualquer indício de ação, enquanto os espiões de McEwan buscam principalmente delatar-se entre si, pressentindo o enfrentamento com um possível governo trabalhista e acabam confiando à jovem Frome a aproximação a um jovem romancista, ao qual o Serviço Secreto financiará sem que ele saiba de onde realmente provêm os fundos para que escreva suas ficções na contramão do espírito contestador da época.
Baseada em um caso real pelo qual McEwan confessa ter ficado obcecado – o financiamento oficial secreto da revista literária conservadora Encounter, que se tornou um escândalo no final dos anos 60 –, Operación Dulce acaba sendo um livro sobre literatura, sobre os anos 70 e, finalmente, uma espécie de autobiografia apagada. A dialética literária está, por um lado, nas necessidades de leitura da insaciável Frome, que busca romances realistas que contem histórias. Por outro, está na emaranhada narrativa de Tom Haley, o escritor agraciado pelo Serviço Secreto britânico sem sabê-lo, pelo qual a protagonista se apaixonará, e cujos contos se parecem muito com os de McEwan daqueles tempos. De fato, o romance não apenas está dedicado a Christopher Hitchens, como também há participações especiais todos os seus amigos daquela época, desde Tom Maschler, seu primeiro editor, até Martin Amis, que protagoniza uma história baseada em uma leitura que ambos compartilharam muitos anos depois da época retratada no livro.
Descobrir essa outra história faz parte do desfrute da leitura de Operación Dulce, que dentro da bibliografia de McEwan sucede a Cheil Beach (2007), seu romance sobre anos 60, por mais que entre ambos tenha aparecido Solar (2010), cuja escrita foi motivada pelo convite que recebeu para fazer parte de uma viagem científica até o Polo Norte, denunciando o aquecimento global. “Logo que terminei de escrever Chesil Beach, que está situada bem no começo dos anos 60, pensei: cedo ou tarde acabarei escrevendo um romance sobre a Inglaterra nos anos 70”, confessou recentemente McEwan ao jornal britânico The Observer.
Mas se Chesil Beach é um romance hipnotizado pelo começo de uma época de libertação geracional, a nova passa a ser apenas uma nota de rodapé sobre seu final. Por meio da visão de sua protagonista feminina, o autor investe contra esse desgastado ideal sessentista e seus fumadores de maconha. Uma postura que, recordou McEwan, era similar à que ele tinha naquela época, depois de seu mochilão pelo Oriente Médio e o conseguinte retorno desencantado para casa, quando pensava em quão irresponsável e egoísta era sua geração, comparando-a com a seus pais, que com a mesma idade havia combatido na Segunda Guerra.
Ainda que haja quem celebre que, com o piscar de olhos de seu final surpresa, se possa dizer que McEwan acabou conseguindo ao mesmo tempo um impossível triunfo para as duas literaturas em disputa – o romance linear e realista, para o desfrute de Frome, e também os complexos jogos literários buscados por Haley –, Operación Dulce é um livro de momentos, que (diferente de Chesil Beach, por exemplo), não se acaba de desfrutar como um todo. A iniciação da sexualmente inquieta Frome pelas mãos de seu professor Tony Canning é, sem dúvida, um desses grandes momentos, e sua sombra vagueia inequívoca sobre todo o livro, que deve a isso grande parte de seu clima evocador, que logo será ocupado pelos agentes menores do Serviço Secreto em busca de uma literatura comprometida – mas com o estado das coisas, e não uma revolução que acabou esgotada mesmo antes de começar, e não precisamente por culpa das confusas e torpes artes da burocracia em ação.
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