Entrevista a Miguel Bonneville
Sobre 'A Importância de Ser Agustina Bessa-Luís'
08-01-2016 - Frederico Bernardino
Depois de nove performances homónimas, Miguel Bonneville rasurou o nome próprio e renasceu com um novo-Eu. Quase simultaneamente iniciou um novo ciclo de criações, denominado A Importância de Ser… , dedicado à vida e obra dos criadores que considera fundamentais no seu percurso pessoal e artístico. Sucedendo a António de Macedo e a Simone De Beauvoir, eis a tão “nossa” Agustina Bessa-Luís a mostrar-se sob o olhar de Bonneville, a partir de 8 de janeiro, no Teatro Taborda.
Enquanto artista optaste por rasurar o nome próprio e assumir Bonneville como “um nome sem género”. Como é que a série A Importância de Ser… se inscreve nessa opção?
A realização de que o corte sobre o “Miguel” teria de ser feito surgiu um pouco tarde em relação ao arranque da série. Mas, A Importãncia de Ser…surgiu na sequência de um conjunto de performances homónimas que termina, precisamente, com o funeral de Miguel Bonneville. Depois de ter “assassinado” uma parte da minha história (contida nessas performances homónimas), decidi renascer com um nome que fosse neutro em termos de género. Riscando o Miguel, mas ainda assim mantendo-o legível, não perco o passado, mas deixo a marca de transição que me permitiu iniciar esta nova série de performances.
Uma série que começa com o cineasta português António de Macedo…
Que foi enquadrado num conceito de recomeço de mim mesmo enquanto autor. Tudo se passou quando, num dia de neura, dei comigo na Cinemateca a ver As Horas de Maria, de António de Macedo, um cineasta que não conhecia. A minha admiração pelo seu trabalho e pelas suas temáticas foi imediata e, socorrendo-me das ressurreições e das almas que entram noutros corpos que ali estavam plasmadas, pareceu-me perfeito ser esse o primeiro passo a dar em relação à morte de Miguel Bonneville.
Seguiu-se então Simone De Beauvoir…
As questões de género e de identidade que sempre marcaram o meu trabalho atingiram um novo patamar com a De Beauvoir. E é ai que assumo a rasura do Miguel. Quando li A Convidada, em 2008, fiquei com muita vontade de fazer um espetáculo sobre ela. Tal só veio a acontecer alguns anos mais tarde, quando li toda a sua obra.
Depois de uma escritora e filósofa feminista francesa, uma escritora tão portuguesa. Qual é, para ti, A Importância de Ser Agustina Bessa-Luís ?
A Agustina foi uma espécie de epifania que surge na minha vida como consequência de um momento de crise. Com o fim de uma relação, decidi isolar-me no campo e levei comigo Fanny Owen. A minha relação com o livro foi tão intensa que, naquele momento, senti ter-me salvo a vida.
O que foi mais tocante nessa salvação?
Com muita piada, a Agustina diz não falar sobre o amor nos seus livros – segundo ela, quem o faz é o Manoel de Oliveira nas adaptações para o cinema. Por isso, aquilo que me tocou intensamente foi o modo como Agustina aborda o amor não falando sobre ele. Na verdade, o tom é sempre muito ácido e bastante cru… e foi precisamente isso que me salvou.
De que modo é que olha para De Beauvoir e Agustina e as inscreve como autoras vitais no teu percurso?
O António de Macedo diz que se estabelece uma “irmandade” entre quem cria e quem recebe a obra. Com elas, aconteceu isso. Senti-me íntimo delas, e o facto de existirem salva-nos a dado momento das nossas vidas. São duas autoras que escreveram sobre a condição feminina nesta cultura patriarcal em que vivemos, mas que buscam uma resposta sobre quem somos, independentemente de qualquer constrangimento.
AQUILO QUE MAIS ME TOCA
NA LITERATURA DE AGUSTINA
É O MODO COMO SE ABORDA O AMOR
NÃO FALANDO SOBRE ELE.
Como tem sido o processo de criação deste trabalho?
Ao contrário do que havia sucedido nos dois espetáculos anteriores, desta vez estou a trabalhar com mais pessoas. Para além do Diogo Bento e do Tiago Vieira, intérpretes e cocriadores, há um apoio dramatúrgico que me ajuda nas questões de identidade e de história. Tem sido um processo muito enriquecedor, até mesmo barroco…
É, portanto, muito diferente daquilo que te é habitual…
Tem menos aquele lado solitário e introspetivo. O espetáculo é concebido a partir de quatro residências artísticas. Para cada uma delas, escolhi um tema, como o corpo – sobretudo o corpo em falência, ou não fosse a literatura da Agustina povoada de personagens enfermas ou mancas; o que é um autor e o que é estar dentro da sua cabeça; ou a história – com a visão de personagens que viveram os tempos (lembro, por exemplo, A Síbila que é uma quase biografia da sua própria família). Assim, todos fomos lendo obras diferentes e trabalhando esses olhares até construir uma dramaturgia.
Mas há claramente uma marca de Miguel Bonneville neste espetáculo?
Sim, há as questões recorrentes de identidade, das personagens em choque com a sociedade… E, claro, há convergências indissociáveis entre os artistas que escolho e a minha vida pessoal e artística.
Encontras uma afinidade quase natural na obra de Agustina Bessa-Luís por seres proveniente da cidade do Porto?
Encontro muita afinidade. Reconheço com imensa familiaridade aquele universo muito típico do Norte, o modo como se olha a família e nos debatemos com a destruição daqueles valores burgueses muito enraizados nalguma sociedade portuense.
O espetáculo surge inserido no Festival Temps d’ Images que alia as artes de palco à imagem em movimento. A relação de Agustina com um período fundamental do cinema de Oliveira está presente no espetáculo?
Apesar de haver vídeo no espetáculo, preferi não o permeabilizar com o contributo e ligação da Agustina com o Manoel de Oliveira. O uso da imagem está ligado estritamente à escrita dela, que é bem mais obscura que o cinema de Oliveira a partir das suas obras.
Já há uma figura sucessora para Agustina nesta série?
Sim. Será o Paul Preciado, nascido Beatriz Preciado, e permitirá continuar na senda dos meus temas recorrentes (género, identidade e filosofia). Ambiciono que seja um musical e um projeto mais focado em mim enquanto intérprete.
[ por Frederico Bernardino | fotografia de Francisco Levita]
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