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As canções no cinema

31-07-2015 - Pedro Coreia

MOON RIVER (Boneca de Luxo, 1961)

Moon River, wider than a mile,
I’m crossing you in style some day.
Oh, dream maker, you heart breaker,
wherever you’re going I’m going your way.

Era ainda o tempo da televisão a preto e branco, tinha eu 13 anos, quando vi este filme pela primeira vez. Revi-o mais tarde, já restituído à cor original, mas quase não dei pela diferença. Porque esta é daquelas películas que imaginamos sempre em várias tonalidades – todas as que assentam bem à pele da estrela. E neste caso estamos perante Audrey Hepburn, uma estrela verdadeira.

 

Rodada em 1961 por Blake Edwards para a Paramount, esta longa-metragem viu suavizadas diversas arestas da novela de Truman Capote, Breakfast at Tiffany’s, herdando-lhe o nome original e a protagonista, chamada Holly Golightly, mulher que “sempre dependeu da generosidade de forasteiros”, como diria Blanche DuBois, outra grande figura feminina da literatura norte-americana.

Edwards limou alguma camada cáustica do texto, conferindo ao filme uma aura de “comédia romântica” ainda antes de este rótulo se generalizar até à náusea. Audrey encarnou Holly à sua maneira, mais doce e sonhadora do que a do livro, surgido em 1958. O papel do narrador Paul Varjak foi confiado a um jovem intérprete formado no Actors Studio, George Peppard: raras vezes um par funcionou tão bem no cinema como neste filme de impossível tradução literal, transformado em Boneca de Luxo na versão portuguesa e Bonequinha de Luxo no Brasil (já José Blanc de Portugal, tradutor da novela, a denominara Ao Começo do Dia, igualmente em crise de inspiração quanto a títulos). Melhor estiveram os espanhóis, que lhe chamaram Desayuno con Diamantes [Diamantes ao Pequeno-Almoço].

Seja qual for o nome, todos lembramos certas cenas da película. A começar pela inicial, enquanto é exibido o genérico: Audrey/Holly, contemplando a montra da célebre joalharia na Quinta Avenida. Ou a da animadíssima festa no apartamento que ela tomou de empréstimo. Ou a das aulas de português em que arranha o nosso idioma enquanto vai repetindo as frases escutadas num disco para agradar a um certo ricaço brasileiro. Ou a fabulosa cena final, de que falarei mais adiante.

Fui vendo o filme com mediano interesse até reparar em Audrey na escada de incêndio do prédio. Tinha ar melancólico, uma viola na mão e cantava quase em tom de sussurro uma das mais belas canções que alguma vez ouvi no cinema. No andar de cima, Paul – candidato a escritor que não passava das primeiras linhas – chegou-se à janela, atraído por aquele fio de voz suficiente para nos virar do avesso. Virou-o a ele, mudando-o para sempre. E a tantos de nós, capazes de nos imaginarmos inseridos nos versos daquele trecho musical.

“Two drifters off to see the world, / There’s such a lot of world to see.” Que adianta percorrermos os trilhos do mundo sem uma alma gémea com quem possamos partilhar esses roteiros e as memórias que deles subsistem?

Henri Mancini (1924-1994) compôs a música navegando contra a corrente dominante naquela época, que clamava por partituras em rock n’ roll. Formado na prestigiada escola musical Julliard, em Nova Iorque, este filho de um operário italiano preferia o jazz e as baladas do seu país de origem. Compôs o tema em parceria com o letrista Johnny Mercer (1909-1976), veterano dos estúdios cinematográficos, e Blake Edwards prestou-lhe justiça, inserindo-o em versão instrumental logo no genérico inicial de Breakfast at Tiffany’s. Mas só escutamos a letra quando Holly a interpreta nas escadas. Incendiando Paul, incendiando cada potencial navegador dos rios lunares.

Um executivo da Paramount chegou a sugerir a eliminação desta cena logo após o primeiro visionamento da película, antes da estreia comercial. Tinha vistas curtas e era duro de ouvido. Felizmente a actriz fez-lhe frente, recusando tal sugestão. Ela que três anos depois viria a sentir uma profunda mágoa quando Jack Warner decidiu dobrá-la em My Fair Lady, recorrendo à voz operática de Marni Nixon. Mesmo depois de Audrey Hepburn ter demonstrado aqui como sabia cantar. E encantar.

Moon River ajudou a elevar este filme ao estatuto de obra-prima. E ganhou asas, voando por si própria. Começou por ser gravada, ainda em 1961, por cantores como Jerry Butler e Danny Williams. A versão instrumental, lançada em disco por Mancini no final do ano, tornou-se muito popular. No ano seguinte vieram os Óscares: melhor canção e melhor banda sonora original para o compositor. E os Grammy: disco do ano, canção do ano. Andy Williams interpretou-a na cerimónia de distribuição das estatuetas em Hollywood e ficou ligado a ela para sempre.

Mas Moon River, para mim, continua inseparável da terna fragilidade de Audrey Hepburn e da perene fotogenia do seu rosto, um dos mais belos da Sétima Arte. E mesmo em dias de sol, como o dia de hoje, sonharei com noites de chuva intensa como a que surge na despedida deste filme inesquecível. Uma cena em que Holly, com um gato molhado nos braços, se deixa enfim beijar por Paul depois de lhe ter dito que ninguém pertence a ninguém.

Falava só da boca para fora enquanto aqueles belos olhos diziam o contrário.

Lá continuam eles, fitando-nos para a eternidade. Lá ecoa novamente a versão coral de Moon River, ao cair do pano, ensinando-nos ad infinitum que nenhum de nós – homem ou mulher – nasceu com vocação para ser ilha: todos somos parcelas de um vasto continente. We’re after the same rainbow’s end.

Fonte: Blog delitodeopiniao

 

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