A Jornada de Lopes-Graça
10-01-2014 - Tiago Sousa
Fernando Lopes-Graça é um dos compositores mais relevantes do panorama da música erudita portuguesa do século XX. Marcado por um percurso de grande consciência política, pensou o papel do compositor segundo as premissas lançadas pelo pensamento Marxista, na tomada de consciência política das massas e no contributo da arte para a luta de classes, mas aprofunda esse pensamento a partir das suas próprias idiossincrasias. Não adopta um mero papel panfletário, apesar deste também corresponder a uma fatia importante da sua criação.
A identidade representa um importante elemento de reflexão do compositor. Segundo uma perspectiva, partilhada com Béla Bartok, de quem era grande admirador, a música é vista segundo uma perspectiva antropológica e é a partir deste estudo que são pensados o fluxo social e as práticas desse corpo. Lopes-Graça desenvolve uma profunda crítica à hegemonia da cultura folclórica patrocinada pelo governo de Salazar. Contesta o seu carácter alienante e a superficialidade da abordagem à cultura rústica, muito mais profunda e complexa, cujo foco vai representar uma parte considerável da sua obra. É com Michel Giaccometti, nos anos 60 do século XX, que vai protagonizar um dos momentos mais importantes no registo dessa memória, dedicando-se à recolha e registo de uma miríade de manifestações artísticas populares.
Lopes-Graça nasceu em Tomar a 17 de Dezembro de 1906. Em 1923 ingressa no Conservatório Nacional em Lisboa, à altura Luís de Freitas Branco e Viana da Mota, de quem Lizst foi mestre, operavam uma pequena revolução pedagógica e estética à frente desta instituição. Representa este o momento de abertura às novas tendências estéticas da Europa que caracterizam o período Modernista. É neste contexto que Lopes-Graça faz a sua opção modernista: uma modernidade anti-romântica, na qual a dissonância se instala como anti-climax. É assim a partir desta dialética, construída entre modernidade e enraizamento que o compositor português desenvolve o seu trabalho.
O resultado desta dicotomia entre a modernidade e o tradicionalismo, leva ao implemento de ideias estéticas muito estranhas ao público de então, para quem o cânone clássico-romântico representava o ponto de maior interesse. Este estranhamento do autor com o meio advém também do seu conflito com a noção generalizada da música erudita como uma arte pura cuja existência se encontra acima dos fluxos sociais. Soma-se a este, o conflito com a tendência hegemónica da afirmação da Portugalidade, sobre a qual sobressai o lado pitoresco das práticas musicais ditas populares, apresentados como grandes cartazes turísticos ou emblemas da raça, e cuja expressão eram, essencialmente, os ranchos folclóricos e o fado de Lisboa.
Para a solução deste problema Lopes-Graça abraça um papel interventivo. Este papel abrangia os diferentes campos da composição, do jornalismo, da musicologia e da pedagogia: dedicou-se ao desenvolvimento exponencial da sua estética, à participação em conferências que dinamiza, escrevendo crítica musical, ou ensinando na Academia de Amadores de Música, instituição na qual dinamizou o Coro da Academia de Amadores de Música e com quem desenvolveu um repertório de música original e arranjos de temas populares.
Este é o momento em que se vive um crescente movimento de contra-cultura em Portugal, no qual Lopes-Graça se encontra profundamente inserido, participando e dinamizando diferentes núcleos que cortavam com o tecido institucional existente. É exemplo de um destes núcleos a sociedade de concertos Sonata, fundada em 1942 com o objectivo de promover as práticas da música contemporânea. No seu seio interpretavam-se obras como as de Schoenberg, Bartók, Ravel, Stravinsky, Prokofiev e outros, sendo frequentada por uma miríade de músicos e amadores de música, mas também artistas, intelectuais, estudantes ou activistas anti-fascistas.
A profundidade da sua obra contempla assim os diversos extractos da definição da sua individualidade que compreende a obra como produto desta estreita relação entre o homem e a sociedade e que permanece ao mesmo tempo extremamente sensível à interrogação e à crítica como elemento devir dessas potencialidades. Tendo sido, em diversos momentos, ora mais objectivo, ora mais subjectivo na construção da sua estética, sempre entendeu o papel do artista como algo que supera o próprio acto da criação e que também contempla a vivência humana. É nesta perspectiva que aborda o seu trabalho de recolha e de estudo da ruralidade acima mencionado. A ele interessa-lhe menos o trabalho cientifico e mais a pesquisa artística e as relações humanas geradas pelo processo. O seu único compromisso é com a liberdade. É profundo o seu empenhamento com a liberdade de criação e a liberdade cívica que dialoga com as diferentes dimensões da natureza humana e as suas expressões.
Tiago Sousa
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