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O “Clássico Instantâneo”

08-01-2021 - Cronista convidado 2 Janeiro, 2021 em Crónicas

De tempos a tempos, o cosmos premeia a cultura da língua portuguesa com a publicação de livros que recebem o rótulo de “clássico instantâneo.” Automaticamente acolhidos pela comunidade crítica com enamoradas loas e com comparações a obras imortais de outras eras, tais como O Som e a Fúria (1929) ou Cem Anos de Solidão (1967), esses livros atingem um estatuto de inquestionável perfeição e os seus autores, antes da fama meros anónimos, ascendem a um céu muito particular, que é o dos escritores que fazem chorar plateias e arrancam lágrimas aos mais empedernidos corações. Por sua vez, imbuído da esperança de abrir a porta para um novo universo de arte e de encantamentos mil, o leitor adquire o tal clássico instantâneo e, para seu grande espanto, percebe que o calhamaço que seus olhos trespassaram não é melhor ou mais original do que tantos outros romances incensados pela crítica.

Como se pode dar o caso de um livro que já nasceu eterno, digno de panteões e de prémios e de homenagens, tenha aquele sabor morno da comida requentada no micro-ondas? Pode o leitor ser tão ingénuo ao ponto de não captar a genialidade do clássico instantâneo, as referências à Antiguidade Clássica e à alienação do indivíduo numa sociedade mecanizada, as ligações entre o livro canonizado e Camões e Cervantes? Numa fruste tentativa de entender o processo de nascimento do clássico “Maisena”, começaria por argumentar que, por maior que seja a tentação de um crítico de comparar um autor português a outros que escreveram noutras línguas, o escritor português deve ser, antes de mais, comparado aos seus compatriotas e inserido no contexto da cultura que o viu nascer. Em vez de o comparar a Bolaño ou aos realistas mágicos, mais lucraria o crítico se fizesse o esforço de entender, por exemplo, que determinado génio nasceu em Ermesinde, namorou com Matilde e Vanessa, foi à catequese na igreja X, estudou na Faculdade de Letras do Porto, instituição onde conheceu dois renomados poetas locais, e nos alfarrabistas da baixa da cidade adquiriu as obras de autores portugueses que durante anos procurou emular. Sendo de aceitar que alguém nascido em Loures possa sofrer a influência de David Foster Wallace, não me parece, no entanto, justo para a comunidade local olvidar a importância de Vergílio Ferreira para a formação do génio. A busca de influências exóticas ou transcendentais, de análises que confiram ao crítico legitimidade para premiar determinada obra com medalha dourada, leva muitas vezes a que autores nados e criados nos arrabaldes de Lisboa sejam apodados de “o novo Borges” ou de “o melhor romancista desde Hemingway”, quando a verdade é que a verdadeira influência estava mesmo ali ao lado, nos neo-realistas. Mas compreendo que seja mais prazeroso dizer que Carlos Manuel, escritor da esquina subido à condição de imortal através de prémio regional, se parece mais com Carver do que com Fernando Namora.

Isto leva-me a pensar em Roland Barthes e em algumas das suas considerações sobre a escrita de prazer e a literatura produzida para agradar. Embora não seja meu intento aqui mergulhar na obra do francês, apetece perguntar: não será um dos nossos problemas procurar na arte elementos que nos confortam e nos trazem aquela sensação agradável de estar sentado no sofá, de estar a ler algo sem grande esforço? Talvez seja inapropriado falar de burguesia e de uma cultura de convenções ou de aparências que filtra o mundo a partir do politicamente correto, mas, na maior parte das vezes que, depois de tantas recomendações, cedo ao impulso de ler o dito “clássico instantâneo”, fico com a ideia de que o autor que o escreveu seguiu à risca os predicamentos e as convenções do seu tempo. Quando escreve sobre temas polémicos, o autor busca o melodrama, a autocomiseração, a empatia do leitor pela personagem. O verbo é escolhido a dedo. A linguagem nunca confunde. A frase é construída a régua e esquadro. Falamos, pois, de uma literatura produzida como as histórias de embalar, mas com a intenção de embalar adultos, de perpetuar o sono. Não será, afinal, o “clássico instantâneo” um produto capitalista que, suscitando arrebatamentos e lágrimas fáceis, e sendo por todos entendível e analisável, nos amansa os sentidos?

É meu entendimento que a literatura vive do difícil, do que não é explicável com sorrisos e dramas. Levada ao limite, a prosa suga a vida ao autor, leva-o à exaustão. O “clássico instantâneo” não vive da complexidade, antes finge ser complexo para ter certa legitimidade, para que o crítico, muito contente consigo mesmo, bote as cinco estrelas que colocam o Manuel do Cacém ao mesmo nível de Tólstoi. É possível que cada tempo tenha a arte que merece e que, em tempos árduos, pautados por crises, desemprego e depressões, um país não necessite de quem lhes traga a amargura da complexidade, que seja preferível ler um Fernando Namora aquecido na cafeteira em vez de mergulhar em algo que nos esventra por palavras. Ainda assim, não deixo de pensar que a curta duração (cinco meses, dois anos?) dos livros que já nasceram clássicos, prova que o que nós, humanos, realmente queremos é dar sentido àquilo que fazemos, e que a cultura burguesa não é feita para ser eterna. O que precisamos mesmo é que nos dificultem as respostas.

Crónica de Paulo Rodrigues Ferreira

Escritor português, professor de língua e literatura na Universidade da Carolina do Norte – Chapel Hill

Fonte: Comunidade Cultura e Arte

 

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