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Carlos do Carmo. A vida era o seu lugar
08-01-2021 - Miguel Judas

Cumpre-se na segunda-feira um dia de luto nacional por Carlos do Carmo, cujo desaparecimento físico, no primeiro dia de 2021, consternou o país que há muito já o tinha tornado imortal.

Morro de pé, mas morro devagar. A vida é afinal o meu lugar e só acaba quando eu quiser", foi com este excerto da letra do fado Sonata de Outono que a Universal, a editora de Carlos do Carmo, comunicou ontem de manhã a morte do fadista, aos 81 anos, "vítima de um pós-operatório a um aneurisma da aorta abdominal".

A frase resume na perfeição a vida e a carreira do artista que, a par de Amália Rodrigues, reinventou o fado - apesar de o próprio recusar sempre tal pretensão, preferindo dizer que antes o devolveu às origens - elevando-o com isso à condição de património mundial, muito antes de este realmente o ser. A Voz, assim era também chamado por muitos, numa clara referência a Frank Sinatra, o seu grande ídolo de sempre, Carlos do Carmo nunca deixou de cantar o que gostava, como tantas vezes referiu ao longo da vida. "Detesto que me limitem", referiu algures em meados dos anos 1970, após ter interpretado todas as canções candidatas ao Festival da Canção de 1976, e de no ano seguinte ter editado disco Um Homem na Cidade, com letras de Ary dos Santos, dando início a um processo de renovação do fado, apenas comparável ao que Amália fez com Alain Oulman.

Sem ele, com certeza, o fado não seria o que é hoje. Pelo que cantou, quem cantou e como o cantou, pelo que fez na sua promoção, tanto nacional como internacionalmente, em especial aquando da candidatura a Património Imaterial da Humanidade, da qual foi um dos principais impulsionadores.

Mas também e especialmente pelo legado que deixou às gerações futuras, a quem nunca fechava portas e sempre apoiou, como recordou à RTP, sem conseguir conter as lágrimas, aquele que é hoje o seu mais que óbvio herdeiro natural, Camané: "Foi um choque muito grande. Conheço o Carlos do Carmo desde sempre, somos muito amigos. Vai ser sempre uma das pessoas mais importantes do fado. Foi a pessoa que acreditou em mim." Uma passagem de testemunho materializada em 2013, no disco Fado É Amor, no qual reinterpreta alguns dos seus maiores clássicos em dueto com fadistas da nova geração (Camané, Mariza, Carminho, Ana Moura, Ricardo Ribeiro, Raquel Tavares, Cristina Branco, Marco Rodrigues, Aldina Duarte e Mafalda Arnauth).

Um fadista cantor

Filho de Lucília do Carmo, uma das maiores fadistas de sempre, e de Alfredo de Almeida, um comerciante de livros mais tarde proprietário da famosa casa de fados O Faia, poder-se-ia dizer que Carlos do Carmo tinha o destino traçado à nascença, mas foi por pouco que o seu caminho não foi outro. Aos 15 anos foi estudar para a Suíça, para um colégio alemão onde permaneceu durante três anos, antes de se formar em Gestão Hoteleira em Genebra.

Verdadeiro cidadão do mundo e fluente em diversas línguas, trabalhava na Companhia Nacional de Navegação, quando a morte do pai, em 1962, o obrigou a assumir a gerência d'O Faia, onde começou a cantar, só por pura diversão, para os amigos. Em 1964, porém, surpreende e de certa forma escandaliza o mundo do fado, ao gravar uma versão de Loucura, um fado também cantado também pela mãe, Lucília do Carmo, que interpretou na companhia do quarteto de Mário Simões, acompanhado a piano, baixo, guitarra elétrica e um coro de vozes femininas.

À época, o fadista justificou a escolha por ser "a única letra que sabia de cor". Apesar de ter crescido a ouvir gente como Alfredo Marceneiro, Maria Teresa de Noronha ou Carlos Ramos, as suas preferências musicais apontavam na altura para outras latitudes - do Brasil de Dorival Caymmi, ao eixo franco-belga de Jacques Brel, passando, claro está, pela América do inevitável Frank Sinatra, de quem Carlos do Carmo disse um dia ser "o maior fadista", que alguma vez ouvira cantar.

Influências que desde cedo começou a incorporar no seu fado e que logo em 1967 lhe valeram o prémio de Melhor Intérprete, atribuído pela Casa da Imprensa. E em 1970, o primeiro álbum em nome próprio, O Fado de Carlos do Carmo, seria considerado pela crítica o Melhor do Ano. Estava de vez lançada uma carreira que, sete anos depois, teria um dos seus inúmeros pináculos com a edição de Um Homem na Cidade, hoje uma referência obrigatória na história do fado e da própria música portuguesa, álbum no qual interpreta apenas poemas de José Carlos Ary dos Santos, musicados por composições ainda hoje consideradas bastante inovadoras, de José Luís Tinoco, Paulo de Carvalho, António Victorino d'Almeida ou Fernando Tordo, entre outros.

Tal como aconteceu com Ary dos Santos, ao longo da sua carreira Carlos do Carmo nunca deixou de trazer para o fado novos e surpreendentes autores, como António Lobo Antunes, José Saramago, Manuela de Freitas, Vasco Graça Moura, Maria do Rosário Pedreira ou Júlio Pomar. E também musicalmente nunca deixou de arriscar, como tão bem ficou demonstrado nos aclamados álbuns conjuntos com os pianistas Bernardo Sassetti (2010) e Maria João Pires (2012).

Um homem sempre do seu tempo

Sempre grato à vida - "é tão bom estar vivo", repetia amiúde nas entrevistas -, Carlos do Carmo teve o seu maior reconhecimento quando, em 2014, lhe foi atribuído um Grammy Latino de carreira - o primeiro atribuído a um artista português. Mesmo assim, o Presidente da República de então, Cavaco Silva, não lhe deu os parabéns, talvez devido às sempre assumidas simpatias políticas de Carlos do Carmo pelo Partido Comunista Português. Anos mais tarde, em entrevista à TVI, quando questionado se tinha ficado incomodado com essa falta de reconhecimento, apenas respondeu, com um largo sorriso, que "não", pelo contrário, "até foi um elogio".

A justiça seria entanto reposta por Marcelo Rebelo de Sousa, que mal tomou posso como Presidente da República condecorou Carlos do Carmo como Grande-Oficial da Ordem do Mérito - já anteriormente, aliás, outro presidente, Jorge Sampaio, o havia reconhecido, com o grau de Comendador da Ordem do Infante D. Henrique. Mas o maior reconhecimento era o do público, "o carinho das pessoas", tanto das que lhe esgotavam os concertos -como aquele, último, no Coliseu dos Recreios, em 2019, onde recebeu as Chaves de Honra da Cidade de Lisboa, um galardão municipal geralmente apenas atribuído a chefes e a antigos chefes de Estado - como das mais anónimas que com ele se cruzavam na rua.

"Sempre fui muito bem tratado por todos, sou uma pessoa com muita sorte", afirmou, comovido, no tal concerto de despedida, mas apenas dos palcos, pois preparava-se para editar um novo disco, chamado E Ainda? Segundo a Universal será lançado a título póstumo ainda neste ano, pois, como um dia escreveu Mia Couto e Carlos do Carmo gostava de citar, "cantar, dizem, é um afastamento da morte. A voz suspende o passo da morte e, em volta, tudo se torna pegada da vida". E a voz de Carlos do Carmo é assim mesmo: imortal.

Fonte: DN.pt

 

 

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