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Questões Oportunas

Coisas da temporada Covid
03-07-2020 - Carlos Reis

“Resido numa das freguesias declaradas em situação de calamidade (freguesia das Águas Livres, no município da Amadora). Mas a minha realidade, tal como a de muitos, é um pouco mais complexa. 

O meu pai vive a escassos minutos de mim, mas portanto já no concelho de Lisboa, na freguesia de Benfica. E trabalho em Lisboa, onde passo a maior parte do tempo da minha vida, e a minha rua fica exactamente na fronteira administrativa entre um concelho e outro, e só não sou oficialmente residente em Lisboa por cerca de 300 metros. Mas esses 300 metros são o suficiente para o Estado me considerar com suspeição. E também justificam que o preço de mercado por metro quadrado da minha casa valha menos do que o preço médio de qualquer tugúrio em Benfica, embora as finanças não façam essa distinção na hora do cálculo para o pagamento do IMI. Nem qualquer empresa distribuidora de electricidade, gás e comunicações o faz também. 

Para efeitos de taxação e pagamentos não há qualquer distinção para os suburbanos. Apenas nos distingue o nosso estatuto social menor perante as elites do regime. 

Sou assim, para todos os efeitos - e tal como centenas de milhares de pessoas - um lisboeta não oficial, de segunda categoria, vulgarmente suburbano, que trabalha e vive a maior parte do seu tempo em Lisboa, mas que dorme noutra circunscrição administrativa. 

Esta minha banal circunstância exemplifica, a meu ver, a arbitrariedade das medidas de contenção mal amanhadas e anunciadas pelo governo e o total desnorte com que se proclamam estágios de pseudo-actuação, como se as classificações burocráticas de estado de alerta, de estado de contingência, ou de estado de calamidade, fossem por si só eficazes nalguma coisa. 

É que o vírus, ao contrário do que algumas cabeças oficiais talvez possam pensar, não se detém perante fronteiras ou limites administrativos. 

Por isso há que colocar aqui o dedo na ferida e dizer que o rei vai nu. Não houve, nunca houve, qualquer milagre português. Isso foi, falando curto e grosso, uma tanga. 

A verdade é que o poder perdeu o controlo dos acontecimentos por sua própria responsabilidade. Porque passou a mensagem errada aos portugueses - se as pessoas vêem o seu Presidente e o seu Primeiro-Ministro a anunciarem deslumbrados e imperiais eventos como a da Champions, em cerimónias parolas e confrangedoramente tão ridículas, se os vêem deslumbrados com as Websummits e a tecla da inovação tecnológica (a famosa app de contact tracing alguém usou? alguém sabe alguma coisa disso?), se passam todo o tempo num frenesim a passar a mensagem que o turismo pode arrancar em segurança (“tu podes” é o lema oficial para a campanha do turismo interno) se os vêem em espectáculos no Campo Pequeno com mais dois mil, a aplaudir em auto-comprazimento a estrela geracional do momento, se os vêem a inaugurar com satisfação a época balnear e aos mergulhos nas praias, se os vêem em cerimónias fúnebres de pessoas mediáticas, que juntaram centenas de pessoas, embora o limite autorizado para os funerais de pessoas comuns seja de 20 pessoas (embora se eu morrer por estes dias e se alguém organizar velório ou vigília por mim na paróquia da minha residência só possam comparecer 5 pessoas, porque vivo em área de calamidade) então é natural que cada um, no seu plano individual, se sinta autorizado a usufruir das suas antigas liberdades quotidianas. 

Tudo o resto é incompetência do governo e das autoridades de saúde e pânico perante o abismo do colapso das receitas turísticas. Mas sobretudo é um caso de estudo que comprova bem o preconceito elitista de classe de quem manda no país. 

Uma elite política e social-cultural profundamente snob e discriminatória. 

Se o Príncipe Potemkin ressuscitasse agora em Portugal não faria diferente. Só que agora, em vez de ordenar que se montassem cenários de cartão a representar aldeias idílicas e se arranjassem figurantes de camponeses felizes para que a Czarina Catarina pudesse observar enquanto passava, com satisfação e do  conforto da sua carruagem, a felicidade e bem-estar do seu povo, o Príncipe Potemkin tudo assim faria para recuperar a “imagem” internacional de Portugal. 

É esta a obsessão do regime. Isso e disfarçar as muitas misérias e as várias sucessões de incompetências. 

Num governo obcecado com a propaganda, e que tem no Presidente da República o seu maior ventrículo, o fundamental é agora repor a ideia de que Lisboa é saudável, segura, e é limpa. É reafirmar a imagem de que Lisboa é uma cidade de classe média-alta e confortável. É manter a todo o custo a grande imagem legitimadora do regime: Lisboa como montra turística, Lisboa de marca, Lisboa trendy, e Lisboa de bons hábitos. 

Por isso a culpa do descontrolo das novas infecções e que põem o R+ acima de 1, e que nos colocam de fora dos critérios de boa parte dos países europeus que definem a segurança sanitária de cada país, passa assim a ser culpa da massa anónima e indiferenciada dos suburbanos e daquilo a que os americanos chamam de “low life” (entre nós: os chungas dos bairros “saudáveis”).  E da falta de juízo dos miúdos, claro. 

Para se fingir que se ataca a sério o problema (mas sem perturbar a retoma) definiram-se assim 15 freguesias malditas que pudessem concentrar as frustrações colectivas do país. Acabaram por depois ser 19. Ficaram em 18. E nesta roleta russa de números até eram para ser 20 as freguesias-calamidade mas Lisboa não podia correr o risco para a sua imagem de ter mais do que uma freguesia em situação de calamidade. Assim sobrou a freguesia de Lisboa mais óbvia (Santa Clara, que tem a nossa Scampia na Ameixoeira, e a parte de leão dos bairros PER na Alta de Lisboa). O Lumiar, cuja junta é presidida pelo influente deputado Pedro Delgado Alves, ficou de fora da calamidade (embora só por anedota se possa pensar que o vírus não é capaz de descer pela Quinta das Conchas até às Linhas de Torres). Ficou igualmente de fora a freguesia de Marvila cujos autênticos cortiços estão mais escondidos. Mas imaginar sequer que o Bairro da Ameixoeira vive em calamidade enquanto Chelas é seguro desafia a inteligência de qualquer pessoa que não seja avençada do Dr. Medina. E igualmente para debaixo do tapete da “imagem” ficaram os hosteis e as pensões manhosas da Arroios multicultural, porque as lojas de conveniência, as obras, e os Uber e Glovo têm de continuar a funcionar. 

A verdade é que embora o país suburbano dos pobres e remediados seja o coração da democracia ele não fica bem na fotografia da Lisboa cool do regime. E por isso, à medida que se avança pelo IC19 na direção contrária de Lisboa, ou se passa de Benfica para a Pontinha, e daí para Odivelas, ou se passe do Parque das Nações para Moscavide, mais se desce na hierarquia e no estatuto social. O que é que quem manda sabe das realidades de vida destas centenas de milhares de pessoas? Das suas dificuldades para ter uma vida decente? De como a degradação dos espaços e dos serviços públicos afecta a sua qualidade de vida? Das contingências quotidianas destas massas de pessoas? Nada. 

Mas a somar a estes dois países (o das elites e o das periferias) há ainda um outro país ainda mais esquecido. Que de vez em quando se descobre que existe: é o país dos bairros sociais, das AUGIs. É o país da Quinta do Lavrado e da Cova da Moura, do Monte da Galega e do Casal dos Machados, do Jamaica e da Quinta da Lage. 

Este país só agita as consciências quando somos confrontados com a sua miséria social. Aí o poder reage sempre da mesma maneira: faz anúncios. Assim, desta vez, anunciaram que há 10 milhões de euros para despejar nos “bairros saudáveis”, a nova designação orwelliana para estas situações habitacionais e vivenciais de miséria. 

Apesar de estarmos habituados não deixa contudo de ser chocante que se pense domar a pandemia com ameaças de multas de 300€ para penalizar certos comportamentos sociais, a quem ganha pouco mais de 600€ por mês. Precisamente os mesmos comportamentos que estas pessoas vêm ser praticados bem à frente dos seus olhos, todos os dias nas televisões, pelos membros das elites, e por quem manda em Portugal. 

Ainda esta semana correu um meme com piada: 11 pessoas de poder numa reunião comunicavam ao país novas proibições de ajuntamentos na Área Metropolitana de Lisboa com mais de 10 pessoas. Notável. 

Quem manda esquece-se que as obras que manda executar no país e nas cidades são feitas por pessoal que vive nestes sítios. Quem se manifesta nas ruas contra o racismo esquece-se que quem lhes limpa a casa ou lhes engoma a roupa nas lavandarias tem de apanhar o comboio e o autocarro todos os dias para trabalhar. Quem aponta o dedo aos ajuntamentos no Bairro da Jamaica e exigiu o encerramento dos seus botecos com polícia de intervenção esquece-se que quem lhes leva a comida encomendada pela Uber Eats vive em situações pouco mais que miseráveis. Quem vai ver e celebrar o Bruno Nogueira, entre centenas de seus pares, esquece-se que os miúdos de Chelas também têm direito a divertir-se e a socializar no Verão. 

Já alguma vez foram ao Bairro da Boavista numa noite de calor? Experimentem. Porque é que acham que os pobres gostam de conviver aos magotes nas ruas frente aos cafés, fazer churrascos na rua, e colocar mini-piscinas insufláveis nos logradouros e às portas dos prédios? Já alguma vez saíram do vosso activismo de sofá e das vossas muitas asserções piedosas e já foram até lá? Já foram à Cova da Moura? Ao Prior Velho? Ao Bairro Alfredo Bensaúde? 

Querem agora tirar mais o quê a estas pessoas? 

Em Março e Abril estes três países estiveram aparentemente unidos. Mas bastou a tentativa de regresso à normalidade para o antigo normal também chegar. Assim regressou a ideia inconfessada de que cada classe deve estar no seu sítio. 

Enquanto uns desconfinam em escapadelas de fim de semana e regressam aos seus convívios e jantares e amenidades, outros têm de confinar nas suas freguesias feias e incaracterísticas, e onde ninguém que é alguém se pode atrever a dizer que vive em qualquer reunião ou evento social. 

Se isto fosse um guião para um filme Charles Dickens não o escreveria melhor. Não é o “Tale of two cities”, é certo, mas é mesmo o país em que vivemos. Melhor, são os três países em que vivemos. 

“Tu podes”.  Podem, mas só podem alguns.”

Carlos António Alves dos Reis

Ensaísta e professor português, especialista em estudos queirosianos.

 

 

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