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A luta pela Comissão Nacional Eleitoral

10-05-2019 - Rui Verde

A Comissão Nacional Eleitoral (CNE) é o órgão de administração eleitoral independente criado no âmbito do artigo 107.º da Constituição da República de Angola (CRA). A sua actividade tem-se pautado por uma grande complacência face aos desígnios do poder instalado.

No entanto, há uma abertura protagonizada por João Lourenço, e há que registar a crescente consciencialização política dos angolanos, bem como a realização de eleições autárquicas pela primeira vez. Este contexto obriga a que a CNE se torne instituição central e alvo de uma atenção inédita até aqui. A fraude eleitoral pura e dura torna-se cada vez mais difícil.

Novo presidente para a CNE e candidatura de Raúl Araújo

Neste momento, decorre o processo concursal de designação do novo presidente da CNE pelo Conselho Superior da Magistratura (CSM). O novo presidente terá um mandato de cinco anos. Orientará a CNE nas eleições autárquicas e, depois, nas eleições gerais que escolherão o presidente da República em 2022. Será, pois, uma figura importantíssima no espectro político angolano.

Portanto, não podemos deixar de aludir à polémica candidatura de Raúl Araújo. Doutorado em Direito pela Universidade de Coimbra, Raúl Araújo foi essencialmente um ilustre professor de Direito e advogado, ao longo da sua carreira, desempenhando também funções como reitor da Universidade Lusíada e bastonário da Ordem dos Advogados. Em 2012, foi nomeado juiz conselheiro do Tribunal Constitucional de Angola, tendo terminado o mandato no passado mês de Fevereiro.

O CSM parece entender que o facto de Raúl Araújo ter sido juiz conselheiro do Tribunal Constitucional não o torna magistrado judicial, como é exigido pela Lei Orgânica sobre a Organização e o Funcionamento da Comissão Eleitoral (artigo 7.º, n.º 1), não se qualificando, assim, como candidato a presidente da CNE. Esta é a polémica formal que rodeia a candidatura de Araújo.

A ela acresce uma dúvida mais difusa, que lhe atribui a qualidade de candidato patrocinado por Rui Ferreira, o actual presidente do Tribunal Supremo, ele próprio muito contestado dentro do sector judicial e na sociedade civil.

O parecer de Bacelar Gouveia

Para sustentar a sua posição e contestar a interpretação segundo a qual a sua passagem efémera pelo cargo de juiz conselheiro do Tribunal Constitucional não o torna magistrado judicial, Araújo apresentou um parecer de Jorge Bacelar Gouveia. Este parecer corre célere pelas redes sociais.

Bacelar Gouveia é um professor de Direito, português, com vasta obra publicada sobre Angola, que tem colaborado consistentemente com o regime de Luanda, em especial com o simpático e controverso obreiro da legalidade angolana: Carlos Feijó.

Temos então duas águias jurídicas – Raúl Araújo e Bacelar Gouveia – a defender que uma pessoa que durante toda a sua vida foi docente de Direito, por ter ocupado durante sete anos a posição de juiz conselheiro do Tribunal Constitucional, se torna magistrado judicial.

O parecer de Bacelar Gouveia tem 36 páginas de argumentação e conclui o seguinte (p. 33): “O conceito de ‘magistrado judicial’, constante do art. 7.º, n.º 1, al. a), da LOCNE, não pode ser interpretado restritivamente, dele fazendo excluir os juízes conselheiros do Tribunal Constitucional, isso representando uma incorrecta interpretação de tal disposição legal.”

Não somos águias jurídicas, nem voamos alto como estes ilustres jurisconsultos – somos apenas pequenos castores que tentam no terreno construir as melhores edificações possíveis em defesa do Direito. Todavia, discordamos em absoluto das posições aduzidas por Jorge Bacelar Gouveia, secundando Raúl Araújo, e consideramos que este não reúne condições para ser candidato a presidente da CNE.

A ausência de razão de Raúl Araújo e Bacelar Gouveia

Na elaboração do seu douto parecer, Bacelar Gouveia não atentou em dois aspectos essenciais: a natureza do Tribunal Constitucional e a letra da Constituição e da Lei angolanas.

Comecemos pela natureza do Tribunal Constitucional. Esta instituição resulta de uma formulação jurídica proposta pelo professor austríaco Hans Kelsen, no início do século XX. Kelsen procurava encontrar uma fórmula que, por um lado, garantisse a protecção da Constituição e, por outro, não fosse alvo das críticas que o Supremo Tribunal americano suscitava. Como se sabe, desde uma famosa decisão do tribunal presidido pelo juiz John Marshall, em 1803, que os tribunais americanos declaram inconstitucionais leis não conformes à Constituição escrita dos Estados Unidos. Na Europa, houve muita relutância em seguir este exemplo, em virtude do princípio da separação de poderes e da legitimidade democrática das Assembleias legislativas.

O argumento é que uma classe quase aristocrática, como eram os juízes, não poderia ter o poder de invalidar normas aprovadas por assembleias que representavam os eleitores.

Contudo, ao não existir qualquer controlo da constitucionalidade das normas, a verdade é que a Constituição poderia ser atropelada a bel-prazer.

Ora, é este o problema que Kelsen resolve com a sua proposta de criação de um Tribunal Constitucional que seria um órgão especificamente instituído para verificar a conformidade das normas legais à Constituição. Seria, nas palavras de Kelsen, um legislador negativo com funções jurisdicionais.

No fundo, vemos que este tribunal é misto, semi-legislativo e semi-judicial. Como escreve Stone Sweet, da Universidade de Yale, o Tribunal Constitucional tem um espaço constitucional próprio, que não é político nem judicial, ou, como afirmam Ginsburg e Garoupa, “os tribunais constitucionais surgem politicamente e qualitativamente diferentes dos tribunais comuns”.

Não vamos desenvolver muito a questão, apenas reforçar que o Tribunal Constitucional tem uma natureza própria, que não é totalmente judicial, nem totalmente legislativa, situando-se num espaço intermédio, pelo que os seus juízes têm forçosamente características próprias e não se integram na magistratura regular, como também não são deputados.

Se a natureza do Tribunal Constitucional afasta a possibilidade de se considerar os seus juízes como magistrados judiciais, mais claro é o resultado quando se lê a Constituição e algumas normas legislativas angolanas.

Comecemos pelo artigo 179.º da CRA, que estabelece os princípios básicos que densificam a actividade do magistrado judicial. No n.º 8 do preceito, estabelece-se o seguinte: “Os juízes devem ser periodicamente avaliados pelo Conselho Superior da Magistratura Judicial, com base no mérito do seu desempenho profissional, em condições e prazos a determinar por lei.”

Quer isto dizer que uma das características do magistrado judicial é ser avaliado pelo CSM. Obviamente que um juiz conselheiro do Tribunal Constitucional não é avaliado pelo CSM, logo, não se enquadra na definição constitucional de magistrado judicial.

Acresce a norma contida no artigo 180.º da CRA, que determina no seu n.º 3 que o “Tribunal Constitucional é composto por onze Juízes Conselheiros designados de entre juristas e magistrados”. Isto significa que a qualidade de magistrado é anterior à designação. Não se é magistrado por se ser escolhido para o Tribunal Constitucional, mas por se ser magistrado pode ser-se escolhido para o Tribunal Constitucional.

Verifica-se, depois, que o n.º 4 do mesmo artigo procede à equiparação entre os juízes do Tribunal Constitucional e os juízes dos restantes tribunais. Se fossem o mesmo, não haveria necessidade de equiparação expressa, pois esta estaria implícita.

Ao sentir necessidade de proceder a essa equiparação, a própria Constituição reconhece as diferenças. Aliás, é no mesmo subpreceito que se estabelece que os juízes do Constitucional têm mandatos de sete anos não renováveis.

Em resumo, o juiz do Tribunal Constitucional assume funções temporárias durante sete anos, altura em que fica equiparado aos outros juízes. Terminando essas funções, termina a equiparação, excepto naquilo que a lei prescreva.

Não bastando estes dois normativos, adiciona-se o artigo 184.º, ainda da CRA, que define o âmbito e objecto das funções do Conselho Superior da Magistratura Judicial, esclarecendo que este é o órgão superior de gestão e disciplina da magistratura judicial. Como obviamente o CSM não gere nem disciplina os juízes do Tribunal Constitucional, fica bem cristalino que os membros deste tribunal não são magistrados judiciais.

Note-se que a Constituição atribui duas características fundamentais aos magistrados judiciais: serem avaliados pelo CSM e estarem sujeitos à disciplina e gestão do mesmo CSM. Nenhuma destas características fundamentais abrange os juízes do Tribunal Constitucional, nem poderia abranger, devido à natureza político-judicial deste órgão.

Finalmente, uma última referência à lei ordinária.

A lei que regula os magistrados judiciais é a Lei n.º 7/94, de 29 de Abril, denominada Estatuto dos Magistrados Judiciais e do Ministério Público.

O seu artigo 3.º, n.º 1 é lapidar:

“A Magistratura Judicial é composta por Juízes do Tribunal Supremo, dos Tribunais Provinciais e dos Tribunais Municipais (…).”

Nada mais. Simples, singelo, e para além de qualquer dúvida.

Nem se diga que não existia Tribunal Constitucional na época da aprovação da lei, pois este já estava previsto nos artigos 134.º e seguintes da Lei Constitucional de 1992, Lei 23/92 de 16 de Setembro. Portanto, quando o Estatuto dos Magistrados Judiciais não incluiu os juízes do Tribunal Constitucional no seu seio, fê-lo como opção clara e informada.

Face ao exposto, não têm qualquer razão Raúl Araújo e Bacelar Gouveia. O concurso para a presidência da CNE deve prosseguir com toda a normalidade democrática e sem interferências.

Fonte: Maka Angola

 

 

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