REFLEXÃO SOBRE LIBERDADE E CRIATIVIDADE - II
15-09-2017 - Jorge Duarte
Continuação
Transcender o normal pode até parecer louco. Mas não são das ideias aparentemente loucas que saem muitas vezes as coisas mais originais? Historicamente, a criatividade chegava a ser associada à loucura. Os rituais de transe, a magia ou as substâncias alucinogénias são artifícios bem conhecidos – principalmente nos meios artísticos - que os praticantes acreditam puder abrir-lhes as portas do inacessível e tocar a seiva da inspiração.
Não poderia deixar de referir, como pertencente à mesma ordem das anteriores, o tempo e o movimento.
O tempo nasceu ou será eternidade? Certo é que estamos inscritos nele, como tudo o que existe. O próprio Santo Agostinho acerca do que é o tempo dizia que «se não me perguntam eu sei, mas se me perguntam e eu tento explicar, já não sei». O tempo escapa à nossa compreensão. Apenas o utilizamos e a ele nos submetemos. Há o tempo da Criação, o da biologia, o da física, o da História, o do relógio, e… o “nosso” tempo, como nos habituamos a medi-lo a partir do nosso nascimento.
Como relativo que é - para o nosso entendimento -, é vivido também diferentemente por cada indivíduo e este pode vivê-lo, de forma diferente em variados momentos.
Certo é que se por vezes o tempo parece longo, outras há que dele não temos percepção. O criar, o solucionar um problema ou o viver um momento único, serão apenas alguns exemplos. O tempo, quando absortos num objectivo ou acontecimento mobilizador da atenção total, perde a sua referência e o indivíduo dele não se dá conta. Pode ser maravilhosa essa suspensão. Porque o criar, o vencer e o superar-se reveste-se de uma enorme alegria. Baudelaire dizia que «só nos esquecemos do tempo quando o utilizamos». E um famoso espiritualista afirmava que para obter a total experiência é preciso mergulhar na total vivência.
O movimento existe desde o começo (se é que houve começo). O movimento está presente em tudo o que conhecemos, desde na mais ínfima partícula atómica até ao infinito cosmos. O movimento é a substância que inquieta e impele à iniciativa e à mudança. Por isso, também ele é o nosso primeiro impulso desde que nascemos. As crianças tocam, gatinham, pulam e correm sempre que as deixam. A música, a dança, o ritmo e todo o movimento do corpo, são expressões intrínsecas à natureza humana e ao exercício do seu equilíbrio. A beleza de um corpo a dançar, fruindo o espaço, é o que há de mais puramente humano. É a desmaterialização física onde toma o lugar a exclusividade do ser com a intimidade primordial.
Infelizmente, não é o que acontece verdadeiramente nas sociedades contemporâneas. O espaço natural de liberdade foi-se confinando e artificializando: as crianças já não brincam na rua mas em parques fechados, os atletas treinam em ginásios e piscinas cobertas. O desporto é puramente competitivo e sem alegria. Vivemos rodeados de paredes.
O homem que nasceu para brincar e criar - conforme entendia Agostinho da Silva - foi-se, aos poucos, afastando dessas condições em troca de outras que o levam ao paradoxo de uma existência meramente mecânica e artificial, cerceado nos sonhos e despojado do sentido precioso de uma vida irrepetível. Percurso inglório para uma civilização que acumula todos os saberes dos milhões de gerações anteriores e, ao invés de caminhar para uma maior liberdade, enreda-se cada vez mais em caminhos de autodestruição e escravidão.
Os muros que se erguem no mundo, a vigilância pública e privada, a manipulação da informação e do pensamento, a alienação, as ideologias fracturantes - camufladas no politicamente correcto -, etc., são formas directas de controlo da liberdade individual. Até a nova sociedade da robotização e da economia digital que vai eliminando o emprego e o uso da moeda, são fenómenos aceleradores de exclusão de grandes franjas de população - um café já se paga através do telemóvel.
Já imaginou andar pelas ruas e nunca mais encontrar um vendedor de castanhas ou um pedinte? Não será, certamente, pela extinção das desigualdades mas simplesmente porque o leitor já não possui moedas. Não é pura ficção, é o que já acontece nalgumas cidades “prósperas” do nosso maravilhoso mundo.
Exemplos de restrições à liberdade, no actual estado civilizacional, são imensos mas desnecessários enumerar posto que todos as conhecemos mais ou menos objectivamente.
Nascemos e tomamos logo dois números e um nome. Seremos, daí em diante, como pombos anilhados e depressa esquecidos, numa sociedade de caçadores e de presas.
Nesta era da globalização, de pensamento único e de analfabetismo funcional, todas as restrições nos são transmitidas como boas e necessárias em nome do nosso conforto, da nossa segurança e da nossa liberdade. Todavia, nunca existiu na humanidade uma tal civilização tão dominada pelo medo. E é sabido como o efeito do medo é paralisante.
Não menos limitador que este é a fome. Ambos conjugados é tudo aquilo que mais contradiz a nossa condição a que toda a ordem universal se propôs oferecer-nos. Cabe-nos, pois, nunca dar como adquirida a liberdade sem nada fazer por ela. E que a criatividade e a imaginação nela estão contidas. Pior que tudo, é julgarmo-nos livres sem o sermos…
E assim serão as pessoas e assim serão os povos.
Jorge Duarte
Voltar |