«Juntas Médicas»
25-08-2017 - Maria do Carmo Vieira
Se queremos que tudo continue como está, é preciso mudar tudo. Percebeste?
Tomasi di Lampedusa, in O Leopardo
A Literatura, como arte da palavra, oferece-nos um sem número de metáforas que se ajustam intemporalmente a um sem número de situações do quotidiano e da vida política. Lembro «Fera humana» (1) ou «Besta humana», metáfora que se aplica à perfeição a quem integra as juntas médicas da Caixa Geral de Aposentações (CGA), tema que escolhi para este artigo.
Longe de cumprir a sua missão profissional, limitam-se estas juntas médicas a
cumprir ordens, entenda-se, a poupar em aposentações por doença, indiferentes ao sofrimento humano, da mesma forma que cumpre ordens um qualquer torturador ou carrasco. Com efeito, estes senhores, transformados em meros funcionários públicos, no pior sentido da expressão, ou seja, aqueles que devem obedecer sem pensar, não levam a sério a sua profissão médica, nem, como será natural, a gravidade das situações que lhes são apresentadas em relatórios médicos, acompanhados de exames confirmativos a que não prestam sequer atenção.
Têm em comum, os que se dizem médicos e integram estas equipas, o gosto em amedrontar o doente, ora olhando-o com desprezo, ora dirigindo-lhe palavras inadmissíveis, ora gozando com a situação descrita pelo «réu», pois assim é encarado o doente; é também habitual o seu parecer, sem qualquer fundamentação, como se exigia, limitado a duas ou três linhas, congeladas no tempo, e que variam entre «não se justifica a incapacidade total e permanente» e não está « absoluta e permanentemente incapaz para o exercício das suas funções».
Impossível esquecer os tormentos de colegas, e outros, que, à mercê deste tipo de «feras», sofrem, e têm sofrido ao longo dos anos, injúrias, humilhações e injustiças a que ninguém decide pôr cobro porque, na verdade, politicamente, interessa que assim continue, se bem que se tenha fingido indignação face a situações denunciadas pela comunicação social e se tenha fingido querer alterar o funcionamento das juntas médicas, com grande alarde, mantendo-se, na realidade, tudo na mesma.
Em 2007, a gravidade de uma situação denunciada pelos familiares de uma professora, sofrendo de leucemia e que viria a falecer depois de lhe ter sido negada a aposentação por incapacidade, tendo sido forçada a apresentar-se ao serviço, foi determinante para uma alteração legislativa (decreto-lei nº 377/2007 de 9 de Novembro) sobre a constituição das juntas médicas da CGA e da ADSE que passaram a ser constituídas exclusivamente por 3 médicos, tendo sido anulada a presença de um técnico administrativo, querendo realçar-se desta forma que os doentes ficariam mais protegidos. Também o exame médico, a que o doente se devia submeter, passou a iniciar-se com «a intervenção de um médico relator designado pela Caixa» em cujas funções se incluía, entre outras, «realizar o exame clínico ao subscritor» e «elaborar um relatório circunstanciado do exame feito com base nos elementos reunidos, organizar o processo clínico do subscritor e submetê-lo à junta médica». Salientava-se, no mesmo decreto, que competia «à junta médica apreciar o processo clínico do subscritor com base nos dados coligidos pelo médico relator e nos demais elementos de diagnóstico constantes do respectivo processo» e que os seus «pareceres» deviam ser «sempre fundamentados». Apesar de toda esta encenação, casos houve, e eu fui testemunha de um deles, em que o médico relator propôs a aposentação por incapacidade, justificando-a, e não tendo achado necessário a realização de mais exames, tendo-se limitado a junta médica a indeferir o pedido de aposentação por doença, sem qualquer fundamentação que não fosse referir que «discordava da opinião do colega relator», acrescentando-lhe a frase habitual do indeferimento. Este comportamento abrange igualmente as juntas médicas de recurso, aliás, normalmente recusadas.
A perversidade da nova situação, porque de perversidade se trata, e que vergonhosamente se mantém, é que os médicos continuam a ser os mesmos, bastando verificar as assinaturas dos indeferimentos ao longo dos anos, os pareceres continuam a ser arbitrários, limitando-se às frases de indeferimento acima evidenciadas, logo, sem fundamentação que faça compreender o percurso que determinou a conclusão apresentada. Assim, aparentemente protegidos pela legislação, continuam os doentes que solicitam aposentação por incapacidade a suportar quem, voluntariamente «voz-do-dono», abdicou da sua responsabilidade profissional e ética.
Para abrir caminho a uma reflexão, escolhi como epígrafe, do presente artigo, a famosa frase de Tancredo dirigida a seu tio, o príncipe de Salina, Don Fabrizio, na obra sublime de Lampedusa, O Leopardo, um clássico cuja leitura aconselho vivamente. Ficamos a perceber a perversidade do raciocínio.
Maria do Carmo Vieira
1) Filme de Renoir (1938), baseado na obra de Zola, La Bête Humaine (1890)
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